O Zen , Dogen e a Meditação |
A
espiritualidade zen budista
Os
estudos de mística comparada e de espiritualidade interreligiosa vão ganhando
espaço cada vez mais singular nas universidades e núcleos de pesquisa que se
irradiam por toda parte. São pesquisas que envolvem também as religiões
orientais, em seu traço místico peculiar. Também no âmbito do budismo pode-se
falar em espiritualidade, entendida como um caminho de busca da libertação.
Esse artigo visa apresentar o tema da espiritualidade zen budista, com base na
reflexão de Eihei Dôgen Zenji (1200-1253), um dos mais importantes e destacados
mestres da tradição Soto Zen.
O
objetivo é mostrar a riqueza dessa espiritualidade e sua peculiaridade de
adesão à realidade cotidiana. Para favorecer a compreensão da questão central
apresentada, visou-se situar a temática no âmbito do contexto histórico do
nascimento do zen budismo e da inserção da presença de Dôgen em seu campo de
ação. A temática da espiritualidade zen foi se evidenciando na abordagem da
problemática da busca do Dharma em Dôgen e de sua atenção aos pequenos sinais
do cotidiano.
Palavras-Chave:
Espiritualidade; Budismo; Zen; Cotidiano; Religiões;
Introdução
Na
introdução de uma obra sobre a espiritualidade budista, a equipe responsável
pelo trabalho – ligada ao Instituto Nazan de Religião e Cultura (Nagóia, Japão)
-, sinaliza que é o budismo, dentre as diversas religiões, que se concentra com
maior ênfase no âmbito da espiritualidade. Não há outra religião que
"deu
maior valor aos estados de percepção e libertação espiritual, e nenhuma outra
descreveu, tão metodicamente e com tamanha riqueza de reflexões críticas, os
vários caminhos e disciplinas por meio dos quais esses estados são alcançados,
ou as bases ontológicas e psicológicas que tornam esses estados tão importantes
e esses caminhos tão eficientes" (YOSHINORI, 2006, p. IX).
Zen é prática no cotidiano |
Os
passos de uma história
Buda e Mahakassyapa |
Num
dos clássicos livros do Shôbôgenzô , de Eihei Dôgen Zengi (1200-1253), o
Bendôwa – escrito em 1231 -, há um relato interessante sobre a origem remota do
zen budismo (DÔGEN, 2001a, p. 126). Trata-se do clássico ensinamento silencioso
de Buda Shakyamuni no Pico do Abutre. Ali naquele histórico lugar ele girou a
flor de Udumbara, sendo correspondido pelo sorriso de seu discípulo
Mahakassyapa (DÔGEN, 2005b, p. 187). Sem necessitar de nenhum recurso verbal, o
grande mestre utiliza-se do simples gesto de girar uma flor para transmitir o
seu ensinamento. Esse acontecimento simbólico vem colocado no início da
transmissão da escola que na China veio nomeada ch´an e no Japão zen. Esse
ensinamento (Dharma) foi transmitido, como sublinha Dôgen, de patriarca a patriarca
até chegar a Bodidarma (470-532), considerado o iniciador da tradição ch´an na
China . Depois vem transmitido para o segundo patriarca, Hui-ko (487-593), e
assim sucessivamente, envolvendo posteriormente as cinco grandes escolas da
tradição zen: Hogen, Igyo, Unmon, Soto e Rinzai. Dessas cinco escolas, somente
a da tradição Rinzai ganhou importante difusão na China. Duas delas tiveram boa
penetração no Japão, a Rinzai – introduzida por Eisai (1141-1215) -, e a Soto,
introduzida por Dôgen.
É
interessante constatar esse traço do giro da flor e do sorriso na origem do
budismo zen. A flor de Udumbara é uma metáfora do raríssimo despertar na
dinâmica histórica. Sobre esse simbolismo discorre Dôgen em outro livro do
Shôbôgenzô, Udonge, que trata da flor de Udumbara. E como diz o cânone budista,
"uma flor desabrocha e o mundo se levanta" (DÔGEN, 2005b, p. 187-189)
. Dôgen faz aqui menção ao tema da "ressonância". Como assinala Yoko
Orimo, na introdução de um dos volumes do Shôbôgenzô (tradução francesa), dada
a "eclosão de uma só flor, o mundo inteiro se transforma, pois esse mundo
é um mundo da ressonância onde todos os existentes fazem eco uns aos outros,
posto que este eco do universo seja audível à nossa escuta concreta"
(ORIMO, 2005a, p. 18). No processo do
"desenvolvimento
de suas pétalas, a flor abre seu coração para escutar o vento, para receber a
água e a luz, para divertir-se com as borboletas e se doar ao mundo. É neste
universo da ressonância onde todas as coisas fazem eco a todas as coisas,
doando-se umas às outras, que a Via do despertar deve se realizar como
presença" (ORIMO, 2005b, p. 222).
Na
tradição zen, a relação entre mestre e discípulo, tão bem expressa nesse
episódio da flor de Udumbara, vem situada num plano de grande importância. A
experiência direta, de coração a coração, vem afirmada como valor substantivo,
o que não significa a relativização ou desprezo das letras dos textos sagrados
(TOLLINI, 2001, p. 156). De modo particular, a espiritualidade de um mestre
como Dôgen sempre esteve enraizada no Sutra do Lótus como em outros textos
sagrados, que também transmitiam com vigor o espírito do Buda.
Bodhidharma |
O
budismo teve boa recepção na China em razão de sua semelhança com a doutrina do
filósofo Lao-Tsé, que também como Buda, sinalizava a centralidade do vazio e a
impermanência. Mas era um budismo essencialmente teórico, e contra ele
posicionou-se Bodidarma,
"que
quis estabelecer na China o genuíno Budismo de Gautama, todo ele vivência e
ação. Como recomendava a prática da meditação dhyana (Ch´an em chinês, Zen em
japonês) como método para o desenvolvimento do prajna, o conhecimento
intuitivo, seus seguidores passaram a ser conhecidos como adeptos de uma escola
Zen, embora Bodidarma não pensasse em fundar nenhuma seita ou escola, e sim
transmitir o verdadeiro espírito do Budismo" (GONÇALVES, 1976, p. 24).
Bodidarma
foi também um "asceta do zazen ", a meditação sentada. Quando ele se
estabeleceu no templo de Shaolin, no monte Sung, passava grande parte do tempo
sentado em meditação, com o olhar voltado para a parede (pi-kuan). E assim
ocorreu por nove anos. Era grande o destaque que concedia à meditação
silenciosa, em lugar da leitura ou meditação dos sutras ou de outros
comentários escritos (KASULIS, 2007, p. 24).
Os
primeiros mosteiros zen surgiram na época do quinto patriarca, Hung-Jen
(601-674). Visualizavam-se a partir desse período dois traços distintivos da
espiritualidade que se firmava: a comunidade monástica e a harmonia com a
natureza. Com o sexto patriarca, Hui-Neng (638-713), consolida-se o principal
ramo do zen-budismo, o zen do sul, que depois será subdividido em várias
escolas, como já assinalado. É ao sexto patriarca que "toda a tradição zen
do presente remete sua origem" (YAMPOLSKY, 2007a, p. 3).
Dentre
os grandes mestres da tradição Ch´an encontra-se o monge Ma-tsu Tao-i ( Baso
Doitsu - 709-788), da dinastia T´ang, ao qual vem associada a escola Hung-chou.
Com ele se processa uma mudança importante no foco da prática da meditação. Não
que ele tenha deslocado o seu valor, mas possibilitou um "retorno" da
experiência contemplativa para a realidade cotidiana. A grande máxima passa a
ser: "Essa mente mesma é Buda". Isso significa, em outros termos, que
"a meta mais remota e transcendental é o que está, paradoxalmente, mais próximo
de nós" (WRIGHT, 2007, p. 35). A iluminação, entendida como busca da
natureza búdica, é vista então como uma retomada ou encontro com a natureza
mais profunda do sujeito, sua natureza original. O praticante vem, assim,
orientado a sintonizar-se com o presente, com o que já se encontra aqui, o
corriqueiro, que na perspectiva anterior era objeto de superação. O que a
escola Hung-chou enfatiza é essa "reorientação da atenção para o
´corriqueiro' e o ´cotidiano'". O cotidiano, ou a mente do cotidiano,
firma-se como o caminho . Nesse sentido, "a meditação não precisa ser uma
atividade especial que quer seu próprio tempo, ambiente e postura. Todo momento
da vida, estando-se ´sentado, de pé, ou deitado', deve ser visto como uma
manifestação da natureza búdica" (WRIGHT, 2007, p. 35-36).
Ao
adentrar-se no Japão, por volta do século XII (período Kamakura), o budismo zen
adquire características próprias. Sua introdução ocorreu por meio de duas
escolas rivais, a partir da China: as escolas Rinzai e Soto. Como nomes
conhecidos na tradição Rinzai, podem ser mencionados Eisai (1141-1215) e Myosen
(1184-1225). Na tradição Soto firma-se com destaque o nome de Dôgen
(1200-1253), que introduziu essa escola no Japão. Enquanto a tradição Rinzai
centrava-se na prática dos koans, em que se exigia dinâmica atividade mental, a
tradição Soto concentrava-se na prática do zazen, voltada para um processo de
"iluminação gradual" (IZUTSU, 2009, p. 139-144) .
(Fim
da primeira parte, continua…)
Autor:
Dr. Faustino Teixeira - UFJF
Recebido
por email (Akira)
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