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domingo, 24 de fevereiro de 2013

O ZEN, DOGEN E A MEDITAÇÃO – Primeira parte

O Zen , Dogen e a Meditação


A espiritualidade zen budista

Os estudos de mística comparada e de espiritualidade interreligiosa vão ganhando espaço cada vez mais singular nas universidades e núcleos de pesquisa que se irradiam por toda parte. São pesquisas que envolvem também as religiões orientais, em seu traço místico peculiar. Também no âmbito do budismo pode-se falar em espiritualidade, entendida como um caminho de busca da libertação. Esse artigo visa apresentar o tema da espiritualidade zen budista, com base na reflexão de Eihei Dôgen Zenji (1200-1253), um dos mais importantes e destacados mestres da tradição Soto Zen.

O objetivo é mostrar a riqueza dessa espiritualidade e sua peculiaridade de adesão à realidade cotidiana. Para favorecer a compreensão da questão central apresentada, visou-se situar a temática no âmbito do contexto histórico do nascimento do zen budismo e da inserção da presença de Dôgen em seu campo de ação. A temática da espiritualidade zen foi se evidenciando na abordagem da problemática da busca do Dharma em Dôgen e de sua atenção aos pequenos sinais do cotidiano.
Palavras-Chave: Espiritualidade; Budismo; Zen; Cotidiano; Religiões;

Introdução

Na introdução de uma obra sobre a espiritualidade budista, a equipe responsável pelo trabalho – ligada ao Instituto Nazan de Religião e Cultura (Nagóia, Japão) -, sinaliza que é o budismo, dentre as diversas religiões, que se concentra com maior ênfase no âmbito da espiritualidade. Não há outra religião que
"deu maior valor aos estados de percepção e libertação espiritual, e nenhuma outra descreveu, tão metodicamente e com tamanha riqueza de reflexões críticas, os vários caminhos e disciplinas por meio dos quais esses estados são alcançados, ou as bases ontológicas e psicológicas que tornam esses estados tão importantes e esses caminhos tão eficientes" (YOSHINORI, 2006, p. IX).

Zen é prática no cotidiano
Dentre as diversas formas de budismo, o budismo zen traduz essa espiritualidade numa perspectiva profundamente prática e colada ao cotidiano. O seu grande objetivo é "captar o fato central da vida" (SUZUKI, 1999, p. 73) no curso mesmo de sua realização, de forma direta e vital. Mais que um sistema filosófico-teorético, o zen traduz uma "trama existencial", que envolve aspectos religiosos, filosóficos e experienciais, sempre interrelacionados (FORZANI, 2007, p. 69). Nessa "atitude de fundo" com respeito à dinâmica da vida, o zen vai dar uma ênfase fundamental à prática, que deixa de ser um simples aspecto particular, firmando-se como chave essencial de acesso à unidade íntima da existência, que escapa à percepção superficial. Por meio dela desvela-se o processo de concentração e purificação do sujeito, de seu corpo-mente, favorecendo a captação da intensidade de cada momento e a possibilidade do exercício de comunhão com o mundo circundante. Mediante o recurso de um "treinamento sistemático", o zen instrumenta o pensamento ao exercício de um novo olhar sobre as coisas: "abre os olhos do homem para o grande mistério que diariamente é representado. Alarga o coração para que ele abrace a eternidade no tempo e o infinito do espaço em cada palpitação" (SUZUKI, 1999, p. 66).

Os passos de uma história
Buda e Mahakassyapa 

Num dos clássicos livros do Shôbôgenzô , de Eihei Dôgen Zengi (1200-1253), o Bendôwa – escrito em 1231 -, há um relato interessante sobre a origem remota do zen budismo (DÔGEN, 2001a, p. 126). Trata-se do clássico ensinamento silencioso de Buda Shakyamuni no Pico do Abutre. Ali naquele histórico lugar ele girou a flor de Udumbara, sendo correspondido pelo sorriso de seu discípulo Mahakassyapa (DÔGEN, 2005b, p. 187). Sem necessitar de nenhum recurso verbal, o grande mestre utiliza-se do simples gesto de girar uma flor para transmitir o seu ensinamento. Esse acontecimento simbólico vem colocado no início da transmissão da escola que na China veio nomeada ch´an e no Japão zen. Esse ensinamento (Dharma) foi transmitido, como sublinha Dôgen, de patriarca a patriarca até chegar a Bodidarma (470-532), considerado o iniciador da tradição ch´an na China . Depois vem transmitido para o segundo patriarca, Hui-ko (487-593), e assim sucessivamente, envolvendo posteriormente as cinco grandes escolas da tradição zen: Hogen, Igyo, Unmon, Soto e Rinzai. Dessas cinco escolas, somente a da tradição Rinzai ganhou importante difusão na China. Duas delas tiveram boa penetração no Japão, a Rinzai – introduzida por Eisai (1141-1215) -, e a Soto, introduzida por Dôgen.

É interessante constatar esse traço do giro da flor e do sorriso na origem do budismo zen. A flor de Udumbara é uma metáfora do raríssimo despertar na dinâmica histórica. Sobre esse simbolismo discorre Dôgen em outro livro do Shôbôgenzô, Udonge, que trata da flor de Udumbara. E como diz o cânone budista, "uma flor desabrocha e o mundo se levanta" (DÔGEN, 2005b, p. 187-189) . Dôgen faz aqui menção ao tema da "ressonância". Como assinala Yoko Orimo, na introdução de um dos volumes do Shôbôgenzô (tradução francesa), dada a "eclosão de uma só flor, o mundo inteiro se transforma, pois esse mundo é um mundo da ressonância onde todos os existentes fazem eco uns aos outros, posto que este eco do universo seja audível à nossa escuta concreta" (ORIMO, 2005a, p. 18). No processo do
"desenvolvimento de suas pétalas, a flor abre seu coração para escutar o vento, para receber a água e a luz, para divertir-se com as borboletas e se doar ao mundo. É neste universo da ressonância onde todas as coisas fazem eco a todas as coisas, doando-se umas às outras, que a Via do despertar deve se realizar como presença" (ORIMO, 2005b, p. 222).

Na tradição zen, a relação entre mestre e discípulo, tão bem expressa nesse episódio da flor de Udumbara, vem situada num plano de grande importância. A experiência direta, de coração a coração, vem afirmada como valor substantivo, o que não significa a relativização ou desprezo das letras dos textos sagrados (TOLLINI, 2001, p. 156). De modo particular, a espiritualidade de um mestre como Dôgen sempre esteve enraizada no Sutra do Lótus como em outros textos sagrados, que também transmitiam com vigor o espírito do Buda.

Bodhidharma 
O budismo teve boa recepção na China em razão de sua semelhança com a doutrina do filósofo Lao-Tsé, que também como Buda, sinalizava a centralidade do vazio e a impermanência. Mas era um budismo essencialmente teórico, e contra ele posicionou-se Bodidarma,
"que quis estabelecer na China o genuíno Budismo de Gautama, todo ele vivência e ação. Como recomendava a prática da meditação dhyana (Ch´an em chinês, Zen em japonês) como método para o desenvolvimento do prajna, o conhecimento intuitivo, seus seguidores passaram a ser conhecidos como adeptos de uma escola Zen, embora Bodidarma não pensasse em fundar nenhuma seita ou escola, e sim transmitir o verdadeiro espírito do Budismo" (GONÇALVES, 1976, p. 24).
Bodidarma foi também um "asceta do zazen ", a meditação sentada. Quando ele se estabeleceu no templo de Shaolin, no monte Sung, passava grande parte do tempo sentado em meditação, com o olhar voltado para a parede (pi-kuan). E assim ocorreu por nove anos. Era grande o destaque que concedia à meditação silenciosa, em lugar da leitura ou meditação dos sutras ou de outros comentários escritos (KASULIS, 2007, p. 24).

Os primeiros mosteiros zen surgiram na época do quinto patriarca, Hung-Jen (601-674). Visualizavam-se a partir desse período dois traços distintivos da espiritualidade que se firmava: a comunidade monástica e a harmonia com a natureza. Com o sexto patriarca, Hui-Neng (638-713), consolida-se o principal ramo do zen-budismo, o zen do sul, que depois será subdividido em várias escolas, como já assinalado. É ao sexto patriarca que "toda a tradição zen do presente remete sua origem" (YAMPOLSKY, 2007a, p. 3).
Corpo de Hui-Neng mumificado

Dentre os grandes mestres da tradição Ch´an encontra-se o monge Ma-tsu Tao-i ( Baso Doitsu - 709-788), da dinastia T´ang, ao qual vem associada a escola Hung-chou. Com ele se processa uma mudança importante no foco da prática da meditação. Não que ele tenha deslocado o seu valor, mas possibilitou um "retorno" da experiência contemplativa para a realidade cotidiana. A grande máxima passa a ser: "Essa mente mesma é Buda". Isso significa, em outros termos, que "a meta mais remota e transcendental é o que está, paradoxalmente, mais próximo de nós" (WRIGHT, 2007, p. 35). A iluminação, entendida como busca da natureza búdica, é vista então como uma retomada ou encontro com a natureza mais profunda do sujeito, sua natureza original. O praticante vem, assim, orientado a sintonizar-se com o presente, com o que já se encontra aqui, o corriqueiro, que na perspectiva anterior era objeto de superação. O que a escola Hung-chou enfatiza é essa "reorientação da atenção para o ´corriqueiro' e o ´cotidiano'". O cotidiano, ou a mente do cotidiano, firma-se como o caminho . Nesse sentido, "a meditação não precisa ser uma atividade especial que quer seu próprio tempo, ambiente e postura. Todo momento da vida, estando-se ´sentado, de pé, ou deitado', deve ser visto como uma manifestação da natureza búdica" (WRIGHT, 2007, p. 35-36).

Ao adentrar-se no Japão, por volta do século XII (período Kamakura), o budismo zen adquire características próprias. Sua introdução ocorreu por meio de duas escolas rivais, a partir da China: as escolas Rinzai e Soto. Como nomes conhecidos na tradição Rinzai, podem ser mencionados Eisai (1141-1215) e Myosen (1184-1225). Na tradição Soto firma-se com destaque o nome de Dôgen (1200-1253), que introduziu essa escola no Japão. Enquanto a tradição Rinzai centrava-se na prática dos koans, em que se exigia dinâmica atividade mental, a tradição Soto concentrava-se na prática do zazen, voltada para um processo de "iluminação gradual" (IZUTSU, 2009, p. 139-144) .


(Fim da primeira parte, continua…)

Autor: Dr. Faustino Teixeira - UFJF

Recebido por email (Akira)


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