O sorriso do jovem Krishnamurti |
(Continuação do texto : Krishnamurti e a imagem estereotipada do iluminado)
O principal problema com os estereótipos ou modelos, não é somente porque podem não corresponder à realidade, mas porque podem nos levar a falsas idealizações e expectativas. Ou seja, o buscador ou meditador pode começar a “imaginar” o tipo de pessoa que ele vai ser quando se “iluminar”. Algo como: "tudo bem, agora sou uma pessoa vazia, carente, invejosa, impaciente, inconstante e angustiada, mas continuarei meditando e, um dia, serei uma pessoa plena, segura, calma, silenciosa e feliz". Cria-se assim um “ ideal” do tipo de pessoa que ele quer tornar-se no futuro, levando-o a trabalhar árduo no presente para obter êxito. Ou seja, ele usa a meditação como “caminho” para transformar-se no que ele pensa ser um “iluminado”. Desta forma, a pessoa corre grande risco de perder-se nas ilusões de suas próprias idealizações e imagens estereotipadas. Um iluminado, por definição, não segue modelos, nem padrões . Ele só “acontece” quando não existem mais nenhum paradigma pré-estabelecido. Sendo assim, é um erro, imaginarmos como deve ser um iluminado, como deve agir, o que deve dizer, que estilo de vida deve levar etc.
Obviamente que há sinais característicos que nos ajudam a reconhecer um iluminado, mas isso não tem nada a ver com imagens estereotipadas. Por exemplo, o próprio fato de não corresponder ou não querer parecer “iluminado” já é um sinal positivo. Mas não é suficiente. Como não há padrões que o prenda, ele pode também, de repente, agir dentro de um padrão por um motivo de ordem superior ou missão. Assim, o problema não está em ele parecer ou não “iluminado” pois isso é muito subjetivo e não nos compete julgar. O problema está em nossas expectativas e idealizações que podem frustrar-se tanto em relação ao suposto “iluminado” como em relação à idealização de nossa própria iluminação.
Por exemplo , vejamos o caso de Krishnamurti, talvez o único iluminado cuja vida foi registrada e exposta ao público desde a infância até os últimos minutos de vida. Um caso realmente raro, se pensarmos que quase nada temos registrado sobre Buda e Jesus. E mesmo iluminados modernos, nenhum outro teve tanta exposição na mídia quanto ele. Existe algum outro caso com tantos registros do “antes, durante e depois” da iluminação? Quem mais teve sua vida pública e particular tão exposta ao público? Mas essa superexposição na mídia trouxe-lhe também grandes problemas. É verdade que a profusão de registros sobre um grande mestre é algo positivo- principalmente para os pesquisadores e buscadores. Todavia, pode ser um grande problema tanto para o próprio iluminado, quanto para aqueles que idealizam um ser perfeito e sem mácula. Com o advento de Krishnamurti descobrimos que os iluminados podem não ser tão “perfeitos e santos” – principalmente quando estão na matéria, vivendo em um corpo carnal, sujeitos às leis e imperfeições próprias deste plano.
Krishnamurti com sua maneira tão humana de ser criou uma verdadeira polêmica que resultaram em calorosas discussões: ou ele era um iluminado e por isso não tinha defeitos, nem fraquezas humanas ou se tinha fraquezas e defeitos humanos não seria iluminado. Mas, se não era Iluminado como poderia saber o que sabia? Como poderia ser respeitado pelas maiores autoridades no assunto? Como poderia ter influenciado toda uma geração de mestres, sábios, filósofos, pensadores e escritores? De onde vinha sua sabedoria? Dos livros não era, pois sabe-se que nunca leu filosofias. Além disso sua visão era totalmente nova e original. Então como ignorá-lo? Impossível!
O fato é que Krishnamurti nunca advogou perfeição ou iluminação para si mesmo. Nunca se autoentitulou nada. Aparentemente, era uma pessoa normal: tinha uma vida confortável, vestia roupas boas, era fã de bons carros, frequentava ótimos restaurantes e , ainda, não era celibatário. Mas ele nunca defendeu tal condição. Oficialmente, sabe-se que ele teve um caso com a esposa de Raja Gopal - seu secretário particular . Esse caso rolou anos e anos na justiça e veio à tona depois que Krishnamurti morreu. Não cabe a mim julgar ou analisar estes fatos. Quem quiser mais detalhes leia o livro de Radha Sloss “Lives on the Shadows with Krishnamurti”* . A “missão” de defendê-lo coube a sua biógrafa Mary Lutyens no livro “Krishnamurti e os Raja Gopals”**. Muitos conservadores e hipócritas talvez tenham criticado ou rejeitado K. por causa disso. Uma atitude fácil, superficial e conveniente. Mas isso não resolve a questão. Além do mais, nada sabemos sobre outros iluminados. Jesus, por exemplo, vivia uma vida comum, comia bem, bebia vinho, frequentava festas e vivia cercado de mulheres e “pecadores”. Há inclusive pesquisadores que levantam a hipótese de que ele teria se casado com Maria Madalena. Infelizmente, não tínhamos mídia naquele tempo, para comprovar ou não a veracidade dos fatos. Além do mais, discutir esse tipo de questão, nada contribui para nosso crescimento e transformação. E apenas reforça a imagem estereotipada do iluminado “santo” e “perfeito”.
A verdade é que não dá para descartar Krishnamurti, nem muito menos sua mensagem. Apesar de uma aparente “incoerência” não há, na verdade, contradição entre o que ele pregava e o que vivia- pois nunca defendeu um ideal de moralidade ou castidade. Sua mensagem sempre foi no sentido de sermos naturais e espontâneos e repudiou toda forma de controle, repressão ou disciplina externa. Além do mais, ele não fazia questão de agradar, ou satisfazer as expectativas de ninguém. Se estava aborrecido, enfadado, cansado ou entediado, assim se mostrava. Isso estava em perfeita consonância com o que ensinava, pois nunca pregou a respeitabilidade, a falsa moralidade ou até mesmo a superficial bondade, caridade ou humildade. Talvez por isso que muitos o rejeitaram. Mas Krishnamurti sempre dizia que não “importa o vaso e sim o conteúdo”. E o conteúdo que Krishnamurti trazia e trouxe foram seus ensinamentos- preciosíssimo tesouro para uma humanidade tão sofredora, confusa e iludida. Ninguém antes dele, enfocou o Dharma ou a Verdade Universal de uma forma tão original, corajosa , profunda e, ao mesmo tempo, tão “racional”, simples e direta.
Krishnamurti foi singular não apenas no que ensinou- mas também na forma em que viveu. Mesmo tradições como o Zen e Advaita - cujos ensinamentos muito se assemelham aos de K.- diferem drasticamente em alguns pontos cruciais . Acredito que não houve na história da humanidade nenhum outro com coragem de desafiar e questionar a autoridade das religiões, tradições, dos mestres, livros sagrados e até de si mesmo- Buda talvez. Mas, Krishnamurti era único porque não era monge, nem sanyasin (renunciante). Através de sua vida ele realizaou o que muitos mestres já ensinavam: que a espiritualidade nada tem a ver com práticas externas. Talvez, por isso, sua missão foi tão delicada. Cumpriu o que Jesus dizia “viver no mundo sem fazer parte dele”. O Gita já pregava que o verdadeiro iogue é o que “age sem apego aos frutos de sua ação e não se abala com os desejos que são como rios que desaguam no Oceano- mas se mantém estável e impertubável”. Lao Tsé e Buda fizeram afirmações parecidas.
Muitos na época de Jesus se escandalizaram com ele por ter levado uma vida tão normal e parecer tão humano. Mas, hoje sabemos que a verdadeira realização é interna. Por isso não há problema se alguns querem usar tanga, fazer votos de castidade, ou renúncia- é um direito que diz respeito à missão particular de cada um. Outros, como Krishnamurti preferiram levar uma vida comum. Lahíri Mahasaya era casado e teve dois filhos- mesmo assim, tornou-se o ideal do iogue pai de família. Sri Yukteswar também fora casado e depois tornou-se sanyasin- vivia uma vida moderada, realizando o ideal Jnana – o Iogue da Sabedoria. Buda pregava o caminho do meio – o que escandalizou os ascetas da época. Ramana Maharshi usava uma tanga e vivia uma vida renunciada e reclusa- mas também escandalizou os tradicionalistas pois este sábio seguiu um caminho próprio, independente das tradições e dos livros sagrados.
Mas será que o fato de Krishnamurti ter vivido uma vida burguesa e de ter sido uma pessoa normal, um indivíduo sujeito aos desejos e fraquezas humanas tira seu valor e importância? Não será exatamente o contrário? Será que Deus, ou o Tao, ou os “Poderes Superiores do Universo” não estão nos dando uma grande lição? Será que Krishnamurti , através do seu exemplo, não inaugurou uma nova forma de conceber a espiritualidade ? Será que a mensagem não é exatamente esta: A DE QUE TODOS NÓS PODEMOS ALCANÇAR O “DESPERTAR” INDEPENDENTE DO QUE SOMOS E FAZEMOS?
Penso que a humanidade já está madura a ponto de compreender a essência do Dharma (Verdade Universal), afinal já estamos no terceiro milênio. O Dharma é eterno e atemporal- mas a humanidade frequentemente a esquece. E não faz sentido dizer que a Verdade não pode ser vivida ou realizada- apesar de nossas imperfeições, desejos e defeitos. Por isso que Krishnamurti é IMPRESCINDÍVEL. Através dele compreendemos que não importam nossos defeitos, desejos ou ego. Não importa o quanto somos “atrasados” ou pecadores. Não importa se somos violentos, invejosos , medíocres, medrosos ou covardes. Não importa quantas encarnações já vivemos, ou se vamos renascer mais centenas mil vezes. Nada disso importa. O que importa é querermos realmente DESPERTAR! Importa sermos “sérios”- como ele dizia. Importa vermos a VERDADE do agora, do que realmente somos e vivemos- seja o que for. Somente a VERDADE, “ O QUE É” pode nos libertar. E ver essa verdade independe de práticas, disciplinas, rituais, comportamento ou moralidade.
Ver “O QUE É” é libertar-se. Isso não quer dizer que a pessoa torna-se perfeita, santa e pura da noite para o dia. Mas, no exato instante deste percebimento ela está livre da percepção ilusória do seu EGO e experimenta o estado de liberdade, em que não há dualidade, divisão ou conflito. Nesse momento a pessoa liberta-se do observador, do experimentador, também chamado de EGO, alcançando assim o estado de paz e harmonia interior. A partir de então, com esta compreensão, o que resta a fazer? NADA. Só perceber o vai-e-vem dos fenômenos, dos pensamentos, dos desejos, das emoções e reações. Então tudo flui naturalmente, desaparecendo neste silêncio, neste vazio-pleno. Onde está o EGO nestas horas? Sim, é claro que ele pode voltar em outras horas, mas ele vai morrendo aos poucos, pois sua principal fonte de alimento foi cortada- a saber : a INCONSCIÊNCIA.
Aí está a essência do Dharma, ensinado por todos grandes mestres : BUDA, JESUS, KRISHNA, LAO TSÉ, SANKARA, MAHAVIR, RAMAKRISHNA, RAMANA MAHARISH, BABAJI e, por último, KRISHNAMURTI. Mas ninguém deve acreditar, nem aceitar nada. Temos que experimentar por nós mesmos! Esqueçamos as discussões teóricas, os estereótipos, as concepções, imagens e idealizações mentais acerca da iluminação.
Quando, através da MEDITAÇÃO, compreendermos a VERDADE , veremos que nada disso faz sentido e apenas uma coisa realmente importa : o DESPERTAR e a LIBERTAÇÃO! E isto não depende de ninguém e está acessível a todos seres humanos- seja ele quem for- do contrário, que sentido teria isso tudo?
ALSIBAR (inspirado)
· O livro escrito pela filha de Raja Gopal “Lives in the Shadows with Krishnamurti” pode ser adquirido através da Amazon.
· A “defesa” de Krishnamurti está no livro “Krishnamurti e os Rajagopals” de Mary Lutyens que pode ser adquirido gratuitamente no Link abaixo:
Desta forma, a pessoa corre grande risco de perder-se nas ilusões de suas próprias idealizações e imagens estereotipadas. Um iluminado, por definição, não segue modelos, nem padrões . Ele só “acontece” quando não existem mais nenhum paradigma pré-estabelecido. Sendo assim, é um erro, imaginarmos como deve ser um iluminado, como deve agir, o que deve dizer, que estilo de vida deve levar etc....
ResponderExcluirExcelente!
Caro Alsibar, tenho uma visão bem simples sobre isso:
Um ser "iluminado" também peida e, portanto, aquele que ainda se ver vitimado pelas poderosas garras do intelecto e da razão, sempre encontrará algo para se agarrar, uma forma para abafar a própria incapacidade e limitação de por si mesmo, alcançar esse estado de ser que tanto critica. Isso é simples e bem natural, não tem como ser diferente. Idealizações, conjecturas, achismos, estereótipos, nada tem a ver com a dinâmica do Ser, mas sim, tão somente do intelecto, da lógica, da razão, amos limitados a si mesmos, pois estão no tempo e espaço.
É uma grande benção quando nos libertamos dessas exigências egocêntricas criadas pelo intelecto, exigências essas descabidas em seu idealismo de perfeição.
Como tenho compartilhado através dos textos, tudo que o intelecto não alcança, satiriza, desfaz, desdenha, não raro hostiliza, ou então, no outro lado da moeda, mistifica ou endeusa. Compreensão que é bom, que é essencial, nada.
Mais uma vez, obrigado pelo excelente texto. E antes que esqueça, já está lá na Confraria.
Um agrande fraterabraço,
Nelson Jonas
"Mas será que o fato de Krishnamurti ter vivido uma vida burguesa e de ter sido uma pessoa normal, um indivíduo sujeito aos desejos e fraquezas humanas tira seu valor e importância?"Nossa, de fato KRISHNAMURTI foi antes de tudo um ser humano. Nada desses fatos que porventura tenham acontecido tira a importância do legado desse autor.
ResponderExcluirÉ isso aí Gil! Obrigado pela visita e participação. Fraterabraços!
ResponderExcluiro link para o livro de Mary Lutyens não existe mais. Se puder repostar agradeço
ResponderExcluirUm "ser iluminado". Para mim esse termo é ridículo e não deveria ser usado para definir alguém. As pessoas que procuram esse caminho rodam em círculos tentando conquistar algo com experiências "superiores a realidade". Você define alguém e tenta se parecer com esse alguem. No fundo queremos fama de "Santos" , então aí é que vem a idealização de um "iluminado". Assisti um diálogo de Krishnamurti com crianças em que elas dizem que se sentem inferiores porque ele foi a vários lugares ou outra coisa qualquer. Mas o interessante é que a resposta dele é tipo assim: Nao existe diferença nenhuma entre eu ser do Brasil e você ser do Japão, todos nós sofremos.
ResponderExcluir