Dôgen
e os caminhos do Dharma
Um
dos traços fundamentais do ensinamento de Dôgen está relacionado ao jijuyu
zanmai, ou seja, à capacidade intrínseca do ser humano para a iluminação. Na
visão do mestre japonês, o Dharma está presente no íntimo de cada pessoa, mas
sua vinda à luz depende de um exercício de prática. Assinala no Bendôwa que um
"método misterioso" foi transmitido de Buda a Buda, que é aquele do
sentar-se em zazen. Não há outro "portal" mais propício para a
iluminação: trata-se "da verdadeira Via para se alcançar a
iluminação" (DÔGEN, 2001a, p. 123-124 e 127) .
Na
visão de Dôgen, não há como separar a prática da iluminação. O acesso à
iluminação não se dá tanto por meio especulativo, mas sobretudo por intermédio
de uma ação que se desdobra do fundo de si mesmo. Há em verdade uma unidade de prática
e iluminação (shusho ichinyo) . O caminho dessa prática, quando orientado por
um bom mestre, leva ao horizonte da iluminação. O simplesmente sentar-se,
retamente orientado, favorece a percepção do "selo do Buda", e o
olhar se desprende para captar em todas as coisas do universo uma presença
iluminada (DÔGEN, 2001a, p. 127).
Para Dogen não há Iluminação seaparada da prática |
Os
traços da prática do zazen foram particularmente desenvolvidos em três obras de
Dôgen: Zazengi, Fukan zazengi e Zazenshin. Na primeira obra, Zazengi, Dôgen
assinala que "a prática do zen é o zazen". Nesse livro, Dôgen aborda
as condições propícias para a realização dessa prática: as condições do lugar e
o estado mental desejado para o seu exercício. É necessário deixar-se habitar
pelo "sem-pensamento" , rompendo com todos os laços ou vínculos que
prejudiquem a concentração do praticante. Não há que ter objetivos, nem mesmo o
de se tornar Buda. O zazen deve ser assumido em "alta consideração"
(DÔGEN, 2001b, p. 43-44). Há que deixar "cair" corpo e mente, livrando-se
de todos condicionamentos e "simplesmente sentar", sem nada esperar.
No Fukan zazengi, que é o primeiro texto escrito por Dôgen (1227), ele aborda
os princípios do zazen. Sugere que o praticante volte-se para o interior,
mediante a prática do zazen, buscando o fundamento originário do caminho, ou da
Via. Esse fundamento, ao contrário da opinião corrente em certa tradição
budista, pervade todas as coisas. O samsara e o nirvana não são dimensões
separadas, mas interpenetradas. O nirvana acontece no processo mesmo do samsara
. E este "rosto originário" do Dharma não emerge senão quando o corpo
e a mente deixam-se cair, e isso ocorre naturalmente, com o desdobramento da
prática. Os aspectos formais e físicos do zazen são desenvolvidos por Dôgen em
sua obra Zasenshin. Ele retoma ali o tema essencial do exercício do
"não-pensamento" na prática do zazen: o desafio de "pensar o
não-pensamento".
Na prática mesma do zazen se dá a dinâmica da iluminação,
não devendo o praticante deixar-se levar por nenhum desejo, nem mesmo o de
tornar-se Buda . Trata-se de algo tão impossível como fazer de uma telha um
espelho mediante seu polimento com uma pedra. Para Dôgen, há que ultrapassar o
"fato imediato" que se apresenta aos olhos e saber buscar mais fundo,
visando captar o mistério das coisas. Isso é para ele o significado mais largo
do estudo do budismo. Seguindo a trilha aberta pelo mestre Nangaku Daie
(677-744), Dôgen sinaliza a importância do exercício de gratuidade no zazen.
Não há por que se preocupar com as "formas do sentar-se", mas voltar-se
para o seu "princípio". Para tanto, a disposição essencial é a de
"deixar cair mente e corpo" (DÔGEN, 2001d, p. 60-70).
Essa
expressão "deixar cair o próprio corpo/mente" (shinjin datsuraku),
tão citada por Dôgen, tornou-se muito famosa, traduzindo de forma límpida e
sintética a essência de sua reflexão sobre o budismo. A forma mais precisa onde
ela aparece na obra deste autor é no Genjo Koan: "Aprender o budismo é
aprender a si mesmo; aprender a si mesmo e esquecer-se de si mesmo. Esquecer-se
de si mesmo é ser despertado para a realidade. Despertar-se para a realidade é
deixar cair o próprio corpo/mente e o corpo/mente dos outros" (DÔGEN,
2001e, p. 180) .
A
dinâmica desse precioso aprendizado envolve a presença de um bom mestre, que
possibilita abrir o caminho da transmissão correta. É um "aprendizado de
desaprender", como tão bem mostrou Fernando Pessoa em seu Guardador de
rebanhos. Há que romper a percepção da realidade que se funda na perspectiva de
um "eu permanente". Não há o que fazer com a ideia de um "eu
permanente". Como sublinha Dôgen, "a realidade não se baseia sobre o
nosso eu" (DÔGEN, 2001e, p. 180). O exercício do zazen faculta a
emergência de um si mesmo que nasce a partir da morte de um eu egocentrado.
Esse eu "deixa-se cair" para fazer emergir o verdadeiro si (jiko).
Trata-se do si real ou universal, habitado pela realidade da vida. O passo
essencial da prática do zazen é facultar a emergência deste "si" que
inclui toda coisa (UCHIYAMA, 2006, p. 38-39) .
Tem
razão Taisen Deshimaru quando assinala que o zazen favorece um
"alargamento da consciência e o desenvolvimento da intuição". Não é
uma prática que desloca o sujeito da vida e da história, mas provoca, antes, um
adentramento singular em sua concretude. É uma técnica que possibilita atenção
permanente, concentração viva "sobre cada instante da vida"
(DESHIMARU, 1981, p. 14 e 30).
Uma
espiritualidade do cotidiano
Toda
a espiritualidade zen acentua com vigor o valor e o significado da experiência
da vida. Mesmo reconhecendo a relevância imprescindível da prática do zazen, a
base essencial onde habita o múnus do Dharma é a vida mesma, em toda a sua
tessitura. Em rica reflexão de Uchiyama Roshi, Como cozinhar a vossa vida, ele
aborda o tema do "apaixonar-se pela vida". Reconhece que na tradição
budista Mahayana a vida é o que há de "mais essencial" (DÔGEN; ROSHI,
1986, p. 67).
Dôgen
sublinha a todo tempo a importância do cuidado, delicadeza e atenção para com o
presente em cada um de seus instantes. Há para ele uma relação de proximidade
entre a natureza e o despertar. Os diversos capítulos ou fascículos do
Shôbôgenzô, bem como os poemas recolhidos no Sanshodoei , expressam esse
"profundo amor" do mestre zen pela natureza. Alguns títulos da grande
obra de Dôgen expressam essa presença: Tsuki (a lua), Shunju (primavera e
outono), Katto (cipó), Hakujushi (cipreste), baika (flor de pêssego), udonge (a
flor de udumbara) keisei sanshokoku (a voz dos vales, as formas-cores das
montanhas), sansuikyo (montanhas e rios como sutra).
Há
todo um rico aprendizado favorecido na tradição zen de desocultar a presença do
invisível, ou do mistério, no âmbito mesmo do visível e poder captar a
ressonância essencial do universo. Mas quando, por exemplo, Dôgen fala em
natureza, a sua percepção é distinta daquela usual no Ocidente. O termo vem
carregado de uma clara conotação religiosa. Não há como deslocar a compreensão
de natureza da experiência do despertar. O termo natureza vem desvelado como
"a realidade concreta percebida a partir do despertar, o mundo mesmo do
despertar" (FAURE, 1987, p. 23). Sob essa perspectiva, Dôgen pode cantar
num de seus poemas do Sanshodoei: "O eco dos vales e o grito dos símios
nas alturas não fazem senão recitar sem cessar as Escrituras" (FAURE,
1987, p. 25) . Na verdade, toda a realidade natural, envolvendo as montanhas,
rios e toda a imensidão da terra constituem "o oceano da natureza de
Buda". Ou ainda, como assinalado no livro Hotsumujôshin, em cada poeira
"existem milhares de escrituras santas e um número incomensurável de
despertares" (DÔGEN, 2005a, p. 173)
Essa
percepção profunda da realidade natural pressupõe, porém, um trabalho da
interioridade, um exercício de aperfeiçoamento do olhar. Não são todos que
conseguem captar a ressonância do universo, mas aqueles que passaram por uma
transformação interior, rompendo com a perspectiva egoica e possessiva, deixando-se
envolver pela "experiência direta", que antecede toda distinção entre
sujeito e objeto (FAURE, 1987, p. 26).
Em
esclarecedora obra sobre a filosofia do budismo zen, Toshihiko Izutsu aborda
esta questão do "Ver" na tradição zen. Com o recurso da visão ordinária,
que se limita ao fato imediato, nem sempre se consegue captar o "outro
lado" das coisas, ou o seu mistério implícito. É quando o olhar se perde
nas coisas sem, porém, reconhece-las. Nem sempre a visão daquilo que está
diante dos olhos favorece a percepção de sua profundidade. Como assinala
Izutsu,
"para
poder ver numa só flor uma manifestação da unidade metafísica de todas as
coisas, não só de todos os denominados objetos mas também do sujeito
observador, o ego empírico deve ter sofrido uma transformação total, uma
completa anulação de si mesmo – a morte de seu próprio ´eu' e seu renascer numa
dimensão de consciência totalmente distinta" (IZUTSU, 2009, p. 20-21).
Verifica-se
que na tradição zen não existe nada senão a realidade do mundo fenomênico. Não
se fala ali de uma ordem de coisas transcendental, que se destaca do espaço e
do tempo. O que há é esse mundo sensível e concreto, na sua espessura vital. O
pensamento de Dôgen reflete essa dedicada atenção ao fluxo da existência
cotidiana, sem que ocorra um acento numa transcendência específica. Há algo de
"singularmente profano" e "absolutamente cotidiano" no zen
por ele apresentado. Relata-se que Bodidarma, ao ser indagado pelo imperador
Wu, sobre o traço de santidade presente no ensinamento do budismo, respondeu
com tranquilidade: "Uma imensa vacuidade, e nada o que fazer com a
santidade" (COOK, 1981, p. 59). Em ilustrativo capítulo do Shôbôgenzô,
dedicado ao tema da vida cotidiana (Kajo), Dôgen assinala que os grandes
mestres e patriarcas do zen simplesmente "comem arroz e bebem chá".
Não há nada de muito "nobre" na vida desses grandes homens: "O
chá ordinário e as refeições frugais de sua vida cotidiana constituem os
pensamentos daqueles que despertaram e as palavras dos patriarcas" (DÔGEN,
2007, p. 306).
O
que o zen, porém, pontualiza é que o mundo fenomênico não se reduz à trama das
coisas sensíveis que se apresentam ao ego empírico ordinário. Ele pode estar
vitalizado por uma particular espécie de poder dinâmico capaz de redimensionar
o ver (IZUTSU, 2009, p. 33). Enquanto o olhar ordinário, essencialista, só
consegue ver a montanha como montanha e o rio como rio, o olhar zen passou pela
experiência do "abismo do Nada", pela experiência fundamental do
desapego. Para além da superfície fenomênica, ele consegue, agora dinamizado
por distinta experiência, captar a mesma montanha sob nova perspectiva: "A
montanha é de novo montanha", ou ainda: "A montanha é simplesmente
montanha". O olhar vem revigorado a partir de seu "renascimento desde
o próprio abismo do Nada", sinalizando a presença de um indivíduo que foi
completamente transformado na sua estruturação interna. Trata-se, segundo
Dôgen, de um olhar que passou por uma atividade específica (gyoji), pontuada
por um modo de conceber e viver a própria vida cotidiana segundo a
espiritualidade zen.
Um
dito tradicional do mestre zen Ma-tsu (709-788), muito repetido por Suzuki,
indica que o "zen é a consciência cotidiana". Todas as coisas
"cantam a verdade", também sinaliza Dôgen. Não há, portanto, que sair
do mundo para gozar da experiência espiritual. Se alguém quer, de fato,
penetrar a verdade do zen, indica Suzuki, com base em Pen-hsien, deve fazê-lo
quando está de pé ou andando, dormindo ou sentado, na palavra ou no silêncio e
em meio aos afazeres do trabalho cotidiano (SUZUKI, 1993, p. 92-93).
Acolher
o cotidiano na sua elementar maravilha é dos mais importantes desafios
apresentados pela tradição zen, e por Dôgen em particular (TOLLINI, 2012, p.
158-160). A percepção da novidade das coisas em cada singular momento ou
instante é favorecida pelo olhar que passou por processo dinâmico de mudança. É
um olhar capaz de captar a essencial gratuidade (mushotoku) das coisas. O
mestre Kodo Sawaki (1880-1965) dizia: "Os homens acumulam conhecimentos,
mas eu penso que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as
cores da montanha" (FAZION, 2003, p. 101). A autêntica meditação não se dá
no distanciamento do instante presente, mas no adentramento de sua espessura.
Ela envolve uma atenção vigilante aos pequenos detalhes do cotidiano, com a
mente aberta e desimpedida. O zazen não se dá somente num tempo específico e
num lugar privilegiado, mas acontece em todo momento, iniciando-se com o abrir
dos olhos pela manhã e finalizando com o seu fechamento à noite, de modo que
todas as atividades realizadas no dia sejam tradução viva de uma prática (COOK,
1981, p. 25).
Nirvana e Samsara são interdependentes |
O
organismo privilegiado para acolher essa pulsação de vida que se acomoda em
cada instante da vida cotidiana é, para Dôgen, o coração (shin – kokoro). Mas
para que ele possa "ressoar com a multidão dos seres do universo" ,
necessita de esvaziamento, de destacamento dos traços do "pequeno eu"
que impedem o abraço universal da acolhida e da compaixão. É o coração liberto
que coloca o ser humano em disponibilização para ouvir com alegria o
"canto das coisas", ou na expressão de Dôgen, o "sentimento e a
emoção das flores" (DÔGEN, 2007, p. 348 e 353).
Conclusão
Em
sua obra de introdução ao zen budismo, Suzuki aborda a questão de ser ou não o
budismo zen um misticismo. Com o humor típico dos grandes mestres, ele indica
que o zen "é um misticismo a seu próprio modo". Sinaliza que ele
"é místico no sentido de que o sol brilha" ou "que uma flor
desabrocha". Reconhece que o traço de religiosidade habita a presença de
uma camélia em flor, em mesma proporção que sua evidência no ato explicitamente
religioso de se prosternar diante dos deuses ou outras atividades rituais
(SUZUKI, 1999, p. 60 e 65). Trata-se, em verdade, de uma espiritualidade
fundada na experiência mais singela do cotidiano. Há muito de humano,
demasiadamente humano, na espiritualidade zen. É o que esse artigo buscou
sublinhar de várias formas. A tradição zen budista vive a espiritualidade no
tempo, sem deslocar a experiência da iluminação para um além incognoscível, ou
um nirvana impalpável. É neste "tumultuado" mundo do samsara que se
dá a oportunidade de iluminação. É por isso, como tão bem mostrou Francis Cook,
que o budismo convoca a todos para uma atitude de observação da vida, com
delicadeza, clareza e atenção, visando encontrar uma liberdade única e um bem
estar partilhado, sempre nesse espaço dado e nas condições precisas que
constituem o edifício da vida humana (COOK, 1981, p. 56).
Fim
Autor:
Dr. Faustino Teixeira - UFJF
Recebido
por email
Sou
grato a Deus, ao Dr. Faustino e ao Akira pelo envio deste maravilhoso trabalho
Alsibar
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