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terça-feira, 26 de outubro de 2021

O NEO-ADVAITA E A DESUMANIZAÇÃO PELA INSENSIBILIZAÇÃO

 



 Tenho observado nos últimos tempos uma tendência crescente para se confundir espiritualidade com insensibilidade. Devido à ascensão de correntes orientais no ocidente, em especial, da tradição indiana conhecida como advaita-vedanta (não-dualista) trazida e disseminada pelos gurus ocidentais, tenho visto um aumento considerável de pessoas interpretando o vedanta como uma filosofia que vai gradativamente abolindo a capacidade de sentir. Sob a justificativa da crença que afirma que tudo ligado à matéria é ilusão e que apenas a “consciência”  é verdadeira, criou-se uma outra ilusão: a de que iluminação é a capacidade de  não sentir e, assim, não sofrer. O resultado é uma visão confusa e perigosa acerca do verdadeiro significado de espiritualidade. Se evolução espiritual significa tornar-se insensível, então todos os esforços são feitos no sentido de abstrair a mente da realidade concreta e de qualquer situação que possa causar tristeza, angústia ou sofrimento. Até mesmo o termo “pessoa” é abolido como forma de não se identificar com as vulnerabilidades do corpo . “Você não é o corpo! Você não é seus pensamentos! Você é a Consciência por trás deles!”. À primeira vista, parecem sentenças profundas e sábias, mas só à primeira vista.  Uma análise mais apurada pode nos revelar exatamente o contrário.

Quando os grandes mestres autorrealizados como Sankara, Ramana, Nisargadata dentre outros, proferem sentenças como essas, eles partem de uma percepção muito avançada acerca da natureza essencial do “eu”.  Ou seja, eles se movem da experiência para o discurso e não o contrário. Isso significa que eles falam de uma experiência real, direta e objetiva e não do que os outros disseram ou do que leram. Foi essa vivência que os fez perceber  que por trás da aparência visível da realidade,  existe “ Algo” maior que alguns chamam de  Luz, Consciência, Deus, Fonte, Amor, Imensurável, etc.  Até mesmo os cientistas já reconhecem que a natureza da matéria não é sólida, que tudo é feito de pequeníssimas partículas de energia, luz e, mais profundamente, espaço e vazio. Então, não há nada de novo nos discursos dos gurus neo-advaitas. O que há de novo é a má interpretação que estão fazendo desse conhecimento, gerando um fenômeno perigoso entre seus adeptos: a desumanização do homem através da insensibilização.

De acordo com essas pessoas, o sentir está ligado ao corpo e, portanto, não devem sentir pois eles são a “ Consciência” e a consciência não sente, não muda, não se apega, não se identifica. Desta forma, criam um estado de completa abstração da realidade para se refugiarem em um estado mental idealizado  em que se sentem seguros e protegidos.  Para eles, quanto maior a insensibilidade, maior a espiritualidade. É claro que não estou dizendo que todos fazem isso, mas que há uma tendência, por parte de alguns, em confundir insensibilização com elevação espiritual. O resultado é a temerária construção  de um estado mental  em que o ser humano é reduzido a coisa, pois se se lhe tira a sensibilidade, tira-se também sua humanidade.

Ora, Jesus — para alguns, o maior de todos os iluminados — nunca defendeu tal tese. Pelo contrário, o que se vê nele é uma vida de muita emoção, sensibilidade, compaixão e paixão. Krishnamurti, um iluminado moderno, por várias vezes enfatizou a importância da sensibilidade, de sentir o vento, os cheiros, as cores, a beleza da natureza, etc. Isso nos leva a refletir o seguinte: embora algumas correntes religiosas conservadoras condenem os sentidos ensinando, inclusive, a controlá-los, essa atitude pode não passar de um grande equívoco. De acordo com Krishnamurti o controlador  é o controlado e, sendo assim, o controle é uma ilusão pois cria mais conflito e sofrimento. Outros iluminados de outras correntes como Yogananda, Sri Yuktéswar, Lahiri Mahasaya e até Babaji, em nenhum momento deram a entender que a realização espiritual significaria a extinção total das emoções e dos sentimentos. Então, tudo leva a crer que está havendo uma espécie de “ilusão de ótica coletiva” nisso tudo.

O problema é o seguinte: cada pessoa só pode falar daquilo que vivencia. O ideal de Ramana de uma vida ascética, apartada do corpo, das emoções e da realidade sensorial era verdadeiro para ele que escolheu o caminho da renúncia.  Por ser uma alma elevada, sua mente mergulhava naturalmente em profundo êxtase, alcançando com facilidade estados elevados de consciência. Todavia, quando uma pessoa comum, com a mente inquieta e cheia de conflitos, fica apenas tentando imitá-lo, não é a mesma coisa. Ao invés de realização espiritual passa a ser invenção mental. Em suma, o que acontece é que a mente começa a condicionar a si mesma, criando para si um mundo ideal em que se exclui tudo aquilo que possa significar dor. Infelizmente, isso não é advaita mas sim uma deturpação do advaita. Quando a mente se divide em “Personagem e Ser”, ou quando ela  resiste a qualquer emoção que possa perturbar sua suposta paz, ela não está sendo não-dualista. Pelo contrário, ela está criando resistência pela não identificação, o que constitui uma fuga da realidade. É uma forma esperta que a mente encontra de evitar a dor e, de quebra, ainda ganhar o status de  “Desperto”. Mas, a verdade é que isso não funciona por muito tempo. Se a cada desafio, problema ou situação difícil, houver, por parte do sujeito, apenas uma negação mental  do fato, sob a justificativa de “não ser real”,   o que ele faz  não é muito diferente daqueles que usam drogas , bebem ou tomam remédios para esquecer dos problemas. Certamente que tal atitude não demonstra lucidez espiritual, mas fraqueza, imaturidade e covardia.

Grandes mestres como Jesus, Krishnamurti, Sri. Yuktéswar e Nisargadata não fugiram da vida, não a negaram. Pelo contrário, vivenciaram-na em todas as suas nuances, desde o prazer de um bom vinho, uma boa comida, uma boa companhia até a dor de uma crucificação, da traição ou de um câncer mortal. Não há vida sem sentimentos ou emoção. Jesus nunca seria um grande mestre se não tivesse sentido em si mesmo a dor dos sofredores e oprimidos. Sendo assim, se você está começando a estudar o advaita através desses gurus ocidentais modernos, tenha muito cuidado não só com aquilo que eles lhe transmitem, mas também com a sua própria interpretação. Não se deixe impressionar pela beleza dos seus discursos e  tenha o máximo de cautela com aquilo que eles ensinam. Não se deixe levar tão facilmente por suas palavras e mantenha-se atento para perceber as sutilezas do discurso que podem levá-lo à desumanização. Mantenha o "desconfiômetro" ligado pois, embarcar numa ilusão como sendo realidade pode até ser bom no começo, mas, no final, pode custar-lhe muito mais caro do que você imagina.

By Alsibar Paz

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