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sábado, 2 de novembro de 2019

SOBRE AS CARTAS DE CRISTO E OS ÚLTIMOS INSIGHTS


                             
Depois que comecei a ler as “Cartas de Cristo”, algumas coisas diferentes têm acontecido comigo . Além da emergência de  sensações e percepções diferenciadas, consegui entender problemas complexos da jornada espiritual que antes estavam confusos . Esses pontos não estão explicitamente expressos nas cartas.  Mas podem ser concluídos a partir das leis que elas expõem. Por exemplo,  o caminho para a iluminação deve ser  feito de forma consciente ou inconsciente? Essa é uma questão fundamental .

Durante toda minha vida, desde que conheci a meditação, eu achava que a “consciência”  era tudo no caminho para Deus. Quanto mais consciente mais próximo de Deus. As pessoas, em geral,estão inconscientes de si, do seu interior, do momento, do que fazem, pensam e sentem. Então,  para aproximar-se de Deus você teria que aumentar , elevar esse nível de consciência  o máximo possível, momento em que a pessoa se tornaria um iluminado, um Buda. Desse ponto em diante, a pessoa passaria a ter consciência plena- que, nesse caso- seria tornar-se uma pessoa  sempre e constantemente alerta, presente, atento aos movimentos e acontecimentos do agora, tanto internos quanto externos- sem oscilação.

Ora, passei uma vida tentando desenvolver e alcançar esse estado de consciência total sem sucesso. Muitas vezes eu conseguia produzi-lo por um breve período de tempo o que me trazia alguns resultados : êxtase, claridade, paz, harmonia e alguns poderes como  sonhos lúcidos, intuições etc. Mas isso não durava.  E quando passava, voltava a dor, a miséria e o sofrimento. Então eu tentava de novo.  E quando não conseguia, procurava novos métodos , técnicas e estratégias e nisso se passaram quase trinta anos. Foi quando, um dia me cansei,  e comecei a pensar que  aquilo talvez estivesse errado. Que iluminação não tivesse nada a ver com o tornar-se consciente no sentido comumente dado a esse termo.

Foi então que resolvi “deixar fluir”. Não me esforcei mais para ficar atento ao momento,  nem procurei mais o tal estado de “presença”. Simplesmente relaxei, esqueci, soltei... abandonei. E foi aí que depois dessa “soltura”,  aconteceu algo inesperado. A claridade veio por si mesma, sem que eu a procurasse. Um novo estado “explodiu”  e tudo ficou muito diferente.  O silêncio,  a paz e a serenidade se fizeram presentes  na minha mente mesmo na presença dos pensamentos.  Todavia, algo havia mudado: o sentido do “eu”estava ausente . Não existia mais o “eu” como centro
controlador de tudo. Havia um “algo silencioso”, que não se abalava nem se identificava com os fenômenos. Esse estado não se parecia nada com o que eu já tinha vivido outras tantas de vezes pois nem era apatia , nem era euforia.  Isso iniciou um novo capítulo na minha jornada interior , transformou-me totalmente e me deu a certeza interior de que eu tinha finalmente encontrado o rumo certo.

Hoje passei a noite pensando e vendo imagens das Cartas de Cristo na   minha mente  e  então  me lembrei dessa questão da consciência. Enfim,  será que as cartas apontam alguma coisa nesse sentido para reconfirmar o que eu já havia intuído em relação ao caminho da iluminação espiritual?
Não só as cartas confirmaram tudo, como  explicaram com mais detalhes  todo esse processo . Como está sendo dito lá, tudo no universo é feito de “impulsos”:  os dois impulsos básicos fundamentais de toda criação ele chamou de  “Pai-inteligência e o da Mãe-amor”  são eles que geram, impulsionam e mantém toda a vida do universo. Isso lembra a “Lei de Três” já exposta nos tratados esotéricos. No caso do caminho da iluminação,  pensei, deve haver essa relação  também porque essas leis se aplicam a tudo e a caminhada espiritual não poderia ficar de fora desse esquema.

No caso da jornada interior, a consciência seria o primeiro impulso- o do Pai. Mas se alguém ficar só no primeiro impulso, nada vai realizar de verdadeiro, concreto e permanente. Precisa então do impulso “mãe”. Se o Pai é o da vontade consciente, o “impulso mãe” é o da entrega  ao inconsciente. Ambos harmonizados e em equilíbrio geram o movimento certo, a ação correta que leva à Verdade- ao Despertar, Iluminação, Deus.

Por isso que se a pessoa ficar só no “ impulso consciente” não chegará a nenhum resultado real e duradouro. Precisa ter a fase do inconsciente , do intuitivo, do silêncio, da não-ação. É verdade que, à primeira vista, isso parece familiar pra muita gente . Talvez devido ao fato de que grandes e verdadeiros mestres como Krishnamurti, por exemplo, já tenha mostrado isso- mas raras pessoas entenderam ou conseguiram vivenciar isso.  Apesar de  JK ter defendido durante muito tempo essa tal “ presença” com a observação dos pensamentos, atitudes e do momento etc, depois de um tempo ele deixou de dar esse tipo de orientação porque os resultados não estavam sendo os esperados.  Uma análise mais acurada dos discursos de Krishnamurti revela que geralmente estes eram divididos em dois momentos : o do “Pai-Movimento- Vontade Consciente- ” e o da “Mãe- quietude-silêncio-Inconsciente” .  Percebe que ele sempre começava sua explanação pelo “conhecido”, pelo movimento, análise e investigação e ao chegar ao limite desse domínio, ele desembocava na quietude, vazio, silêncio, não-ação, inconsciência?  Então, isso é a manifestação dos dois impulsos revelados nas Cartas. Apenas esses dois em conjunto pode produzir a Vida, um novo Ser Espiritual, uma Nova  Consciência Iluminada. E aí está a razão porque “ninguém se iluminou”.

Muita gente lê JK e também outros gurus , mestres e líderes que defendem essa tal “consciência” como se ela fosse o suprassumo do caminho da iluminação – mas dificilmente alguém chegou “lá” usando essa técnica. Na melhor das hipóteses, produziram um estado mental temporário, fraco e artificialmente causado pelo próprio esforço da mente, ou seja, do ego. Esse tal estado de  “presença”  pode até trazer alguns benefícios para a mente /corpo,  mas não representa  muito em termos de mutação espiritual pois o “ego” continua no “centro de comando do eu”.

Para dar um exemplo claro:

Toda a jornada começa com o CONSCIENTE: ou seja, a pessoa percebe sua propria condição de infelicidade , conflito e dor e então ela busca CONSCIENTEMENTE  e por decisão própria, a libertação, o nirvana, a Verdade, Deus.

Depois de passar um bom tempo buscando CONSCIENTEMENTE a libertação e trabalhando por isso de todas as formas -orando,  praticando técnicas, investigando, fazendo o bem etc.-o aspirante deveria, agora, mergulhar no “IMPULSO INCONSCIENTE MÃE” . Ou seja, relaxar, esquecer, deixar no escuro do útero para que um novo “estado de consciência” seja gerado. Esse segundo momento , era para ser o o da MEDITAÇÃO mas o que acontece na prática?

A meditação  tornou-se mais um momento de “presença” , de movimento, da vontade, do “Pai-Consciência” e, assim,  o momento seguinte que seria o do “impulso-Mãe” o do relaxamento do ego,  da entrega, da quietude e inconsciência - não é vivenciado. Em outras palavras,  o momento do “impulso-mãe”, tornou-se uma continuação do “ IMPULSO PAI CONSCIENTE”. E o resultado é que o impulso dado pelo aspirante em direção à geração da luz espiritual permanente não se realizou, ficou incompleto.  É como caminhar, caminhar, caminhar.... e ficar caminhando sem parar sem chegar a lugar nenhum até vir a paralisia,  a estagnação, falta de energia, desesperança  e até odesespero. Percebe-se, com o tempo, que o ego continua sutilmente em forma de esforço, de busca pelo tal “estado sublime de presença”.

As cartas confirmam e esclarecem em detalhes que é nesse movimento de CONSCIÊNCIA  e INCONSCIÊNCIA que o buscador é impulsionado cada vez mais para a meta.  Ou seja, no primeiro momento, a pessoa fica consciente das coisas, dos problemas,  reflete e investiga sobre elas , compreende a natureza da mente, do pensamento, do ego, do tempo e suas limitações etc. Depois disso,   vem o outro o outro momento, o do relaxar, do esquecer, do aquietar-se , do entregar-se ao silêncio e à INCONSCIÊNCIA DE SI para que a própria natureza possa fazer seu trabalho de maturação e  comece a gestação de um centro permanente de silêncio e luz interior.
As cartas também confirmaram outra questão que eu havia tentado solucionar várias vezes e até cheguei  intuitivamente a algumas conclusões  que é sobre a questão do “fazer ou não fazer”. Sadhana ou não Sadhana? É o que vou aprofundar no próximo tópico.

A questão do “fazer ou não fazer”, sadhana ou não-sadhana.

Será que preciso fazer alguma coisa para alcançar Deus ou ele vem independente do fazer? Alguns mestres dizem que você não precisa fazer nada porque Deus não pode ser alcançado,  nem “causado”. A iluminação não é um estado  em que o ego, o pensamento possa produzir a bel prazer porque está fora do seu próprio raio de ação e atuação.

Outros mestres defendem que sim, que temos que praticar muitas sadhanas ( práticas espirituais), rituais, ações, técnicas de  meditação,oração, boas ações etc para purificar a mente num processo constante e gradual até atingir os  mais altos picos da consciência, como  quando alguém ferve uma panela de água e espera ela finalmente o ponto de ebulição e ferver.

Baseado nisso, perguntei-me se as inspirações, epifanias, insights e compreensões que  tive ao longo da vida teriam ocorrido independente dos meus constantes esforços e práticas nesse sentido, ou se elas teriam ocorrido de qualquer jeito independente de eu ter feito alguma coisa ou não. Então, para se ter essas inspirações, epifanias, intuições, insights etc é necessário fazer alguma coisa ou NÃO, já que o pensamento/desejo não pode alcançar essa dimensão além dele mesmo?

E a resposta é a seguinte:

Deus é Amor, Luz , Sabedoria , Felicidade e Compaixão. Ele está sempre enviando seus impulsos de luz para todo mundo porque Deus é primariamente “ Expressão”.  Ora, se Deus está sempre enviando sua Luz e Presença então porque há tantas pessoas na escuridão, no conflito, na prisão escura dos seus egos? Por que ninguém  “capta” essas manifestações divinas?

A resposta é absurdamente simples: porque  elas estão tão preocupados com seus próprios problemas e  suas mentes , tão agitadas pelo medo, conflito  e desejo que elas não conseguem “captar” esses impulsos de luz.  Daí a importância do sofrimento que leva a pessoa a parar, refletir e “ouvir” o que a alma tem a lhe dizer. É nos momentos de crise, quando busca a solução para seus problemas, que a pessoa se torna mais sensível  às inspirações divinas . Todavia, logo depois  que se encontram aliviadas, elas  esquecem das lições recebidas  e voltam ao seu estado normal de distrações,  desejo  e retornam à roda desenfreada da  busca insensata  pelo “mais. Em casos, a pessoas tenta  ao máximo evitar o voltar a esses momentos de quietude e serenidade, talvez por que elas os associam aos momentos de dor e sofrimento.

Já há outras pessoas que se “ligam” mais nesses momentos de abertura à Luz e aproveitam para reavaliar sua vida, identificar sua própria parcela de culpa no processo de crise e, assim, mudar  suas atitudes e consequentemente sua vida.  Então, quanto mais elas estão conscientes desses “impulsos divinos de luz”,  mais fortes, constantes e significativos eles se tornam. No meu caso,  por exemplo, sempre aproveitei essas crises para uma reflexão, avaliação e redirecionamento das minhas próprias ações e atitudes. Claro que nem sempre  segui totalmente as lições aprendidas, muitas vezes as esquecia e caía nos mesmos erros de antes. Mas , mesmo nos meus piores períodos de mundanidade, eu estava sempre “consciente” dos meus limites, daquela “luz” que  me protegia e dos riscos que eu corria caso não os respeitasse. 

Ora, a questão então não é exatamente o “fazer ou não –fazer”. Se o teu “fazer” (oração, meditação, leituras, ações etc) te ajuda a “purificar a mente” -não no sentido moral ou coisa parecida mas no sentido de ficar mais sensível e aberto às inspirações do Pai- então o teu fazer é válido e importante. O cerne da questão  é que muita gente só se conecta com as inspirações divinas durante a meditação, a oração ou através de um  ritual religioso qualquer- mas  logo ao findar deste, ela já esquece tudo o que sentiu, absorveu e viveu, retornando à velha rotina de hábitos e pensamentos antigos. É o momento em que o ego ( pensamentos, desejos, conflitos etc) assume novamente o controle de tudo.
Em outras palavras: se a “prática espiritual” da pessoa a torna realmente mais sensível à voz do  Pai interior, então  ela deve praticar  tudo o que puder. Mas se a pessoa não precisa fazer algo específico

ou formal para ouvir melhor essa “voz” e se, ao contrário, ela precisar de paz , silêncio, reclusão e liberdade para captar melhor sua voz interna, então ela não precisa de nenhuma sadhana tradicional. A forma com que cada um “afina”  seu instrumento mental é muito pessoal - não há uma receita única para isso porque cada pessoa  está num ritmo ou nível diferente e , consequentemente, sua necessidades também são muito pessoais e específicas . Assim, cada pessoa deve descobrir como fazer  para melhor “captar” as inspirações divinas, se numa igreja, numa mesquita , num ritual qualquer, ou mergulhar na inatividade do silêncio, do ócio, do nada interno, entregando seu ego e ficando aberto à  própria voz interior.

O que está sendo dito aqui não é que sadhana não seja importante ou necessária. Mas que sua utilidade vai depender das atitudes e abertura interna de cada um, não da sadhana em si. Se práticas e rituais por si mesmos funcionassem, não haveria tantos monges, padres, pastores e líderes religiosos cometendo crimes , abusos e servindo de instrumento do mal . Se sadhana funcionasse por si só, ela os teria purificado a mente e o espírito o que os teria impedido de entrar cometer certos atos. Mas  o que acontece de fato não é isso.

Pra concluir essa parte, a  sadhana deve ter a medida daquilo que você é, das suas necessidades. Uma pessoa muito grosseira e dominada pelos impulsos do ego precisa fazer muita sadhana do contrário ela pode perecer na escuridão de si. Precisa ir à missa, igreja, orar, rezar, meditar, fazer boas ações e sacrifícios porque é a única possibilidade de abertura para a Luz.  As sadhanas proporcionam, nesse caso, o equilíbrio necessário para que a pessoa não se perca e entre em colapso total . Para muitos, esse pode ser o único momento  em que uma pequena brecha de luz divina consegue penetrar na escuridão de seu poderoso e sombrio ego. Então, nesses casos, a sadhana não apenas é importante, como também fundamental.

Já para alguém que tem uma vivência interior mais profunda, que naturalmente silencia a  voz da mente/ego e se volta para Deus em seu  coração - a sadhana externa é apenas um detalhe.  Naturalmente, ela já faz esse trabalho de sensibilização do “canal” , ao longo do dia , pois aproveita todas as oportunidades disponíveis para relaxar o ego e estar interiormente em contato com a sua luz interna. Sua sadhana está, desta forma, integrada à  sua vida diária. Não é uma questão de formalidades , nem de obrigação- mas porque é/tornou-se natural para ela viver nesse estado de paz e abertura às inspirações divinas que estão sempre surgindo- mas que poucas pessoas percebem ou sentem.  Como disse Ramana a UG Krishnamurti quando  este último foi visitá-lo e perguntou-lhe : “Você pode me dar isso que você tem?”  Ao que o sábio  respondeu: eu posso lhe dar, mas você pode pegar?

Deus está sempre nos enviando impulsos de amor, luz e inspiração- a todos sem distinção. Mas quantos podem, conseguem, tem a sensibilidade e a capacidade de “captar” isso. E daquele  que captam, quantos os guardam no coração de forma a transformar suas ações e sua vida ?
Essa é  a diferença.

Quero deixar registrado que algumas dessas conclusões e esclarecimentos vieram misteriosamente após a leitura das Cartas de Cristo. É verdade que parte dessas respostas já tinham me chegado antes por intuição, mas as cartas ou confirmaram  o que eu já sabia, ou ampliaram e aprofundaram meu entendimento do tema. Agradeço a Deus por tudo e a Cristo que usou vários canais para enviar sua mensagem redentora de Luz nesse finalzinho de milênio, dentre eles , o próprio Jiddu Krishnamurti, o canal do Cristo Universal.

Alsibar

domingo, 27 de outubro de 2019

JIDDU KRISHNAMURTI: SOBRE A INCOMPREENSÃO E O SUPOSTO FRACASSO DE SUA MISSÃO ( J. Krishnamurti about misunderstanding and the supposed failure of his mission)



Este artigo  é o resultado dos meus últimos estudos e investigações  sobre Krishnamurti e o fenômeno da iluminação em si. Nele, reflito sobre as questões envolvendo a vida e o trabalho de JK, sobre a incompreensão dos seus ensinamentos e o suposto fracasso de sua missão. É um artigo um pouco longo por causa da importância fundamental dos assuntos aqui tratados. No final, há os links de referência que serviram de base  e fundamentação para muitas das minhas impressões relatadas ao longo do presente artigo. Leia-o e tire suas próprias conclusões.

Quem lê Krishnamurti, precisa lembrar que ele não enfrentou um processo gradual de iluminação; não precisou buscar nada, nenhuma meta, nenhum objetivo. Sua mente, segundo seu próprio relato e os daqueles que o conheceram - incluindo professores, amigos e os tais videntes- era iluminada desde criança. Por isso, sua dificuldade em entender as  limitações da mente humana comum, presa ao tempo e aos condicionamentos . Toda sua vida foi dedicada ao trabalho de libertar o homem de suas próprias  ilusões e, ao mesmo tempo, tentar compreender por que ele não conseguia alcançar a tão sonhada libertação. Muitas vezes, quando perguntado sobre esta questão, JK a devolvia ao interlocutor: é você  mesmo que tem que respondê-la, não eu. E não era retórica. JK queria realmente entender o porquê da dificuldade humana para a iluminação interior.

Por ser considerado um iluminado - e por acharem que isso significaria ter todas as soluções aos problemas do universo - as pessoas o questionavam e até exigiam dele uma resposta sobre suas próprias deficiências. Muitas vezes, fora pressionado a responder questões que ele não sabia as respostas. Para respondê-las, ele teria que ter passado "da sombra à Luz" e, assim, conhecer as dificuldades peculiares dessa transição. Mas, como ele próprio não a vivenciara, era-lhe impossível dar respostas satisfatórias.

Ao longo dos anos, foi ficando cada vez mais claro que sua missão  não seria tão fácil quanto, talvez, imaginara quando em 1929 dissolvera a Ordem da Estrela do Oriente. Libertar o homem se mostraria uma tarefa difícil, inglória e “quase” impossível. Não se sabe ao certo quantos se libertaram enquanto JK ainda estava vivo, oficialmente não há ninguém - nem mesmo aqueles que lhe eram próximos e que com ele conviveram ao longo de tantos anos. Ele mesmo reconheceu apenas um caso de “mutação real da psiquê” : a Vimala Thakar. Mas essa informação é extraoficial. Foi a própria autora que a deu em seu livro " Eternal Voyage".  Como seu relato não foi negado pelas Fundações, nem pelo próprio Krishnamurti - tudo indica que são informações fidedignas.

Susunaga Weeraperuma
Para entender o porquê dessa guerra de informações entre as Fundações e os  biógrafos não-oficiais de K, é preciso analisar o contexto em que ele vivia e sua relação com as Fundações. É público e notório que havia muito desentendimento entre as diversas Fundações Krishnamurti ao redor do mundo. Segundo o site  oficial de Krishnamurti no Brasil- existem  quatro fundações oficialmente reconhecidas: a da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Índia e da Espanha. Todas com suas  peculiaridades,  planos e desafios administrativos  específicos. Apesar de  Krishnamurti ser uma espécie de presente para  a humanidade, as Fundações- que detinham os direitos do seu legado intelectual - também  queriam ter todo poder sobre sua vida. Isso, talvez, explique o porquê de nenhuma delas fazer referência ao trabalho de Susunaga Weeraperuma  que, mesmo desautorizado pelas Fundações, escrevera diversos livros sobre a vida e a obra de Krishnamurti. Segundo o autor, autorizado diretamente pelo próprio mestre. 

Isso  também explicaria o  porquê da   Vimala Thakar – a Iluminada de Krishnamurti- ter sido totalmente ignorada pelas suas biógrafas oficiais, apesar de sua inegável importância, uma vez que seu caso foi muito famoso na época. Além disso, a Vimala pode ter sido a única pessoa iluminada sob a influência direta de JK. E por que ninguém fala sobre isso?  Por que preferiram ignorá-la? Por que optaram em apresentar JK como um fracassado ? Qual  problema em reconhecer a iluminação da Vimala? Será por que ela era Hindu e se apenas ela tivesse sido iluminada por JK, isso a tornaria uma espécie de sucessora espiritual do mesmo?

Vimala Thakar
Krishnamurti sabia que seria impossível iluminar todo mundo. Ao ser perguntado sobre as consequências da dissolução da Ordem da Estrela do Oriente, ele teria dito que se pelo menos uma ou duas pessoas o ouvissem e realmente quisessem  ser livres - já valeria todo o esforço.  Talvez não interessasse às Fundações , por motivos políticos ou desconhecidos, apresentar Vimala como a única pessoa iluminada pela ação direta de Krishnamurti.  Isso seria dar a ela um status espiritual muito grande.  Vimala escrevera mais de trinta livros sobre temas ligados à espiritualidade e, em um deles, relatou como conheceu Krishnamurti, seus encontros e conversas, até ela ser atendida diretamente por ele para tratar um problema no ouvido. Foi nesse momento que aconteceu a "explosão" do sentido do eu que a transformou totalmente dali por diante.

O escritor espanhol Carlos Silva, e outras escritoras como Pupul Jayakar, já chamavam a atenção sobre o problema do “Círculo Interno” que super protegia Krishnamurti.  Seus participantes, formado por poderosos sócios e patrocinadores das Fundações, tentavam controlar JK como se ele fosse sua propriedade . E de uma certa forma era, pois eles detinham  os direitos autorais de sua obra, marca e imagem. Isso criava uma situação muito difícil para a mente iluminada do sábio indiano pois as Fundações foram criadas exatamente para cuidar dos assuntos administrativos - algo que, no começo, JK queria manter distância.  JK  fora, muitas vezes, chamado para decidir  à revelia, sobre  questões envolvendo decisões, impasses  e discordâncias entre  os membros das Fundações. Vale lembrar que as pessoas que compunham as Fundações eram muitos queridas e  próximas a ele . Amigos pessoais como  Mary Lutyens, David Bohm, Mary Zimbalist e empresários que ajudavam a manter seu trabalho através de financiamentos . Então, ficava muito difícil para Krishnaji separar a vida pessoal das questões burocráticas.

Em suma , aos milhares de leitores, fãs e o público  em geral,  ficou a amarga sensação de um suposto fracasso. Sua última gravação,  pouco antes de morrer, deve ter chocado muita gente. O que se percebe é que mesmo nos últimos instantes de sua vida, JK continuava sendo o mesmo de sempre: um ser  amoroso, sensível, lúcido, coerente e "preocupado" com o andamento das coisas .  Suas últimas palavras foram também sua última polêmica. Após sua morte, foi publicado um artigo do Osho comentando sobre as últimas palavras de Krishnamurti em que o guru afirmava que JK dissera, nesta ocasião, que sua vida teria sido um grande desperdício porque ninguém o teria levado a sério.  Mas, há provavelmente um mal entendido aí. Segundo Mary Lutyens, o que ele realmente disse foi que NINGUÉM havia entendido nada do seu mistério e que ninguém havia entrado em contato com aquela Suprema Inteligência que havia usado seu corpo durante toda sua vida.

Ele estava certo.  A manifestação daquela Suprema Inteligência da forma como aconteceu com K foi única na história da humanidade. Talvez em séculos ou milênios não aparecerá outro titã espiritual de tamanha envergadura. Era um fenômeno raríssimo - tal como Jesus ou Buda . Mas isso não significa dizer que ninguém se iluminou ou que seu trabalho tenha sido um fracasso. A mutação aconteceu a muitas pessoas e continua acontecendo. Não com a mesma força e singularidade de JK, mas dentro da capacidade e limites de cada um. Ninguém nunca será um Krishnamurti, assim como nunca ninguém será um Jesus ou Buda. Mesmo  seres de grande luz como São Francisco, Saulo de Tarso, Santo Agostinho, Padre Pio, Dogen, Nagarjuna,  Bodhidharma etc. não se tornaram iguais aos seus mestres, apesar de terem  mergulhado na mesma fonte. Não se tornaram cópias, pelo contrário, foram seres humanos únicos cumprindo a missão que lhes foi destinada.

UG Krishnamurti
Se  UG Krishnamurti realmente se iluminou como consequência de ter passado sete anos  ouvindo as palestras de Krishnamurti - não temos como saber .  UG nega toda e qualquer influência de JK no seu processo de  mutação da psiquê. Mesmo assim, é visível o quanto ele bebeu da fonte Krishnamurtiana. Negar essa influência é impossível pois, de tão parecido,  ele chegou a ser confundido com o original.  Seus ensinamentos,  expressão e até o jeito de falar não negam a forte influência de JK sobre ele. Afinal, foram anos de convivência, diálogos e discussões diretas com o Jiddu . Mas quem nasceu para UG nunca será um JK. Cada desabrochar é único. Tocar na mesma fonte e energia que alguém tocou não significa tornar-se cópia do outro. Cada qual segue seu próprio caminho e história pessoal.

Voltando às ultimas palavras de Krishnamurti: para deixar uma porta aberta, JK terminou dizendo: mas aqueles que viverem os ensinamentos poderão entrar em contato com essa Suprema  Consciência e Inteligência. Então nem tudo estava perdido. Ele apenas não quis apontar nomes,  para que ninguém se intitulasse  seu sucessor espiritual, evitando, assim  disputas e brigas internas. Ao responder a esta última questão, ele teria que ser cauteloso  como o fizera ao longo de toda sua vida.

Restou a investigadores independentes, como o  autor desse artigo, buscar as respostas a essa questão primordial : ora, se Krishnamurti não conseguira iluminar ninguém, ou ele era um instrutor incompetente ou seus ensinamentos não eram verdadeiros. Como sou professor por profissão, sei que se numa sala de aula ninguém aprendeu o que foi ensinado, o problema certamente está no professor ou em sua didática. Mas, no caso de JK, o problema talvez seja mais complexo. É provável que a humanidade não estivesse pronta para receber ensinamentos tão elevados. Mas, talvez, as próximas gerações estarão.  Krishnamurti deixou um vastíssimo material que certamente vai contribuir para a evolução espiritual das gerações futuras.  Desta forma, a mutação em massa, que muitos sonhavam e esperavam para a Nova  Era não passaria, então, de uma grande utopia.

Nunca houve uma transformação coletiva da humanidade. Os místicos, santos,  sábios e iluminados foram muito poucos em comparação  a quantidade de pessoas que passaram pela Terra desde o surgimento da civilização. Um número tão irrisório que chega a ser insignificante.   O fato é que todas as transformações SEMPRE foram individuais. Os maiores iluminados da humanidade nunca transformaram profundamente as massas. No máximo, elas se tornaram seus devotos e seguidores . Na melhor das hipóteses, os mestres se transformaram em  mitos, referências ou refúgios espirituais- mas nunca foram fator de transformação coletiva - e o mesmo vale para Krishnamurti.

As sementes foram lançadas por todos os mestres que apareceram nesse período de final de milênio sinalizando o começo de uma Nova Era para a humanidade. O diferencial de JK é que sua vida e mensagem foram extensamente registrados ao longo de vários anos por vários meios e recursos modernos. Nunca antes na história, um grande mestre teve sua vida  gravada com tanta riqueza de detalhes, sob tantos ângulos e olhares. Por isso que,  até mesmo  suas supostas “contradições”, devido às mudanças  em sua linguagem e abordagem, foram amplamente percebidas e discutidas por diversas pessoas.

Ao longo de sua vida, Krishnamurti  refez sua própria linguagem para transmitir seus ensinamentos da melhor forma possível. Muitas vezes, teve que mudar termos e expressões na tentativa de  transmitir suas ideias com a máxima exatidão possível. Aquilo que não funcionou ao longo dos anos, ele deixou de dizer. Ao final dos anos 70, começo dos anos 80, vemos um Krishnamurti mais sereno, com a linguagem mais enxuta, precisa e contida.  Questionado acerca dessas mudanças,  Krishnamurti confirmou que sim, sua linguagem havia sofrido alterações, mas não a essência dos seus ensinamentos.

Os últimos anos de sua vida, Krishnamurti  passou tentando entender o porquê de suas palavras não terem tido o efeito que ele esperava.  Algumas vezes, seu desânimo  era explícito beirando a angústia e o amargor. “ Eu me pergunto se vocês estão conseguindo me entender”- repetia constantemente. Realmente ninguém estava entendendo nada. Durante uma reunião pública, alguns ouvintes chegaram ao ponto de pedir que ele parasse de falar, pois se suas palavras não estavam sendo compreendidas, suas palestras eram, portanto, inúteis. Ao ver o vídeo, eu realmente pensei que ele ia se levantar e abandonar o palco. “ É isso mesmo que vocês querem? Que eu vá embora e os deixe aqui sozinhos?”- perguntou novamente ao públicoAlguns responderam que sim. Mas ele olhou-os novamente e viu que alguns não se pronunciaram e  pareciam até discordar daquela  proposta inusitada e, por que não dizer, ingrata ?


J. Krishnamurti
Não. Ele não foi embora. Não os deixou sozinhos. Seria uma atitude simbólica de falta de compaixão e amor pela humanidade. Ele continuou ali com eles, apesar da visível insatisfação e resistência de parte da audiência. Depois de alguns minutos, Krishnamurti toma uma atitude no mínimo inusitada e que deve ter surpreendido muita gente.  Sem nenhum pudor e destoando de tudo o que dissera ao longo de toda sua vida, pois sempre negara os mestres que o precederam, Krishnamurti usa uma parábola de Jesus para fazer o fechamento da questão e concluiu:

“ Talvez alguns dentre vocês entenderão isso : como a semente lançada, talvez algumas possam cair sobre as pedras, outras num campo fértil, outras simplesmente morrerão.”

De fato, não há nada para reclamar de Krishnamurti. Nem ele, nem ninguém  poderia abrir os corações e as mentes das pessoas à força .  Cada um deve preparar seu próprio solo para receber a semente da “cura” ou mutação interior. O iluminado não pode iluminar ninguém- mesmo que quisesse. Nem fazer por outrem o trabalho que é da responsabilidade individual de cada um .

Cada pessoa deve fazer sua parte e não culpar os outros pelas  próprias dificuldades e deficiências. Através dos grandes mestres do passado, a Verdade tornou-se acessível a todos.  O que nos chegou até aqui foram apenas fragmentos. Com Krishnamurti, a mensagem do Dharma - a Verdade Universal- retorna com uma nova roupagem, numa linguagem moderna e acessível a todos. Não é necessário ser perfeito, nem deixar sua casa, família e trabalho para encontrar a iluminação. É preciso sim assumir a  parcela de responsabilidade e, diante das dificuldades, procurar as soluções.  Se os ensinamentos de JK parecem muito complicados, talvez seja melhor abrir-se a outras fontes de sabedoria e conhecimento. Os dois iluminados ligados à história de Krishnamurti - UG e Vimala- beberam  de outras fontes- eles não ficaram presos ao K. 

Não posso terminar esse artigo sem dar minha contribuição a todos aqueles que realmente querem encontrar a iluminação. Na minha jornada espiritual, sempre tive a fé, a devoção e a oração como importantes aliados em momentos de grande crise. Sempre recorri a " Deus", ao Poder Supremo- seja lá que nome você chama- para me mostrar a "Luz". E, misteriosamente, essa "Luz" sempre me levava aos livros de Krishnamurti. Bastava abrir um livro qualquer e lá estava a resposta, a Luz que me poria novamente na caminhada. Sei que muitos leitores de K o consideram ateu ou algo parecido - mas ele não era. Ele apenas não precisava acreditar em Deus porque ele o vivia como uma Realidade pessoal. Ele  queria que as pessoas saíssem do nível das crenças e passassem para o nível da vivência direta. 

É como se, através de Krishnamurti,  aquela " Suprema Inteligência" tentasse uma nova estratégia para ajudar a humanidade em sua escalada evolutiva já que a religião, as tradições e sistemas haviam falhado. Nascia, então, a figura do iluminado moderno, capaz de alcançar  altos níveis de consciência em contato com  aquela "Suprema Inteligência” enquanto atende as demandas e desafios da vida “material”. Através de JK, fica claro que ninguém precisa se isolar numa floresta, caverna ou mosteiro para ter contato pessoal com o Sagrado. JK não abandonou a vida social,  nem o mundo, mas apenas suas ilusões, superstições, mentiras e falsidades.
Krishnamurti, velho e na juventude

JK nunca teve um emprego formal. Seu trabalho consistia em  transmitir os ensinamentos para a humanidade. Não se eximiu de nada. Viveu, estudou, viajou, se relacionou, aproveitou a vida em todas as suas dimensões- inclusive a amorosa.  Mostrou ao mundo que é possível vivenciar a Verdade, mesmo em meio aos afazeres do dia a dia  e que não é necessário desprezar o corpo, nem tampouco o conforto da vida moderna- como um  bom carro ou uma casa, por exemplo- para ser espiritualizado. Procurou viver uma vida saudável e equilibrada, aproveitou  os prazeres que a vida lhe proporcionou sem culpa , medo ou falsos moralismos. Através do seu exemplo, a Existência parece mandar uma mensagem ao mundo: a de que ninguém precisa ser moralmente perfeito, nem socialmente impecável  para  encontrar a Realidade. Só precisam  ser  honestos,  corajosos, sinceros e terem a Verdade como referencial e objetivo.


Se a missão de Krishnamurti foi a de ser um mensageiro e não um professor- então ele a cumpriu com êxito. Assim como  Jesus, do alto de seu sofrimento, parecia ter fracassado, no caso de Krishnamurti o fracasso também é só aparente. Há muito tempo pela frente para que seu valor possa ser reconhecido. Ele jogou as sementes e agora cabe a cada ser humano cuidar do solo para que cresçam e floresçam. Seu trabalho está terminado - mais de setenta anos- agora chegou a nossa vez. Não hesite em buscar a ajuda divina. Apenas saiba que ninguém tem o poder de despertar outrem.  A iluminação começa dentro de cada ser humano. A luz está em todos os lugares mas só você pode abrir a porta para ela e convidá-la a entrar. Sempre foi  assim e sempre será .


Repostagem autorizada desde que indicada a fonte, autor e endereço eletrônico do mesmo.

Créditos:

Link do vídeo citado acima:



Links sobre Vimala Thakar:


Site e referências a Susunaga Weeraperuma:


Referências a UG Krishnamurti:



Link sobre o escritor espanhol  Carlos Silva que faz uma análise de suas últimas palavras de Krishnamurti e das fundações:


Link do Osho sobre a morte as supostas últimas  palavra de Krsihnamurti ( erroneamente citadas por ele)



sábado, 19 de outubro de 2019

O Enigma que foi J. Krishnamurti by Susunaga Weeraperuma



(Quero avisar de antemão que não concordo totalmente com o artigo de Susunaga, mas me estranha ver alguém que acompanhou o trabalho de K ao longo  de mais de 30 anos escrever certas coisas. Ao mesmo tempo, Susunaga levanta  questões que merecem reflexão séria por parte do buscador sincero. A meu ver, sem entrar nas questões específicas, K veio para quebrar muitos paradigmas, mitos e idealizações. A imagem secular do iluminado como um ser divino, puro, distante e perfeito- excluindo sua dimensão humana- parece existir só nas propagandas, narrativas, lendas e mentes dos devotos. Krishnamurti, assim como todos os outros iluminados, teve seu lado “humano, demasiadamente humano”- e isso não deve ser motivo de tristeza ou desânimo, pelo contrário, mostra que Deus, a Verdade, a Iluminação está acessível a todos, apesar de todas nossas falhas, contradições e “defeitos”- Alsibar)


Estar em um estado permanente e contínuo de samadhi é a marca tradicionalmente aceita das pessoas auto-realizadas. O samadhi deles é sempre contínuo; nunca é ocasional. Não é experimentado intermitentemente.

Descrito de várias maneiras como “a alteridade”, “a intensidade” ou “a imensidão” nos escritos de Krishnamurti, seu samadhi chegou a ele aos trancos e barrancos. Todas as evidências apontam para o fato de que seus estados de samadhi eram de curta duração:
“Muito cedo nesta manhã, muitas horas antes do amanhecer, ao acordar, havia aquela  força de intensidade penetrante com sua severidade. Havia nessa severidade, felicidade. Pelo relógio, "durou"  quarenta e cinco minutos com intensidade crescente. O riacho e a noite tranquila, com suas estrelas brilhantes, estavam dentro dela.
"Todo pensamento, todo sentimento se foi e o cérebro ficou totalmente parado ... E de repente essa imensidão incognoscível estava lá, não apenas na sala e além, mas também profunda, nos recessos mais internos, que antes eram a mente."

Durante aqueles períodos em que K não era dominado pela "alteridade", ele se comportava como um ser humano comum, no sentido de estar sujeito a estados de medo, ansiedade, timidez, irritabilidade e depressão. No entanto, ele era uma pessoa excepcional, porque era quase desprovido de inveja, ódio ou violência.

Antes de dar palestras públicas, K costumava se sentir tímido e nervoso. Mas quando influenciado pela "alteridade", sua personalidade mudava visivelmente, especialmente no ato de proferir um discurso. Sua desconfiança desaparecia temporariamente e ele sempre falava como um homem sob a influência de um poder invisível. Então ele parecia estar em transe e palavras de sabedoria fluíam de seus lábios. Muitas vezes, depois de um discurso, ele não se lembrava do que acabara de dizer. Imediatamente após cumprir sua missão especial como professor espiritual, K retornaria ao estado psicológico de um ser humano comum. É uma pena que os biógrafos de K tenham ignorado o fato dele ter essa dupla personalidade. Eles falharam em entender que, na maioria das vezes, K se comportava como qualquer mortal comum e muito amável; mas em outros momentos, ele se tornava um canal humano para a manifestação da “alteridade” divina.


As pessoas auto-realizadas experimentam o estado de união com Brahman apenas temporariamente ou permanentemente? Ramana Maharshi observou que “uma pessoa que anda passeando ao sol se sente fresca quando chega à sombra. Alguém que fica indo da sombra para o sol e depois volta para a sombra é um tolo. Um homem sábio fica permanentemente na sombra. Da mesma forma, a mente de quem conhece a verdade não deixa Brahman. A mente dos ignorantes, pelo contrário, vagueia pelo mundo, sentindo-se infeliz e, por um tempo, volta a Brahman para experimentar a felicidade. De fato, o que é chamado mundo é apenas pensamento. Quando o mundo desaparece, ou seja, quando não há pensamento, a mente experimenta a felicidade; e quando o mundo aparece, passa pela miséria. "

Segundo K, o pensamento não pode curar feridas psicológicas porque o próprio pensamento é a ferida. O pensamento não pode nos libertar, porque o próprio pensamento é o principal obstáculo à libertação. K disse: “Não é a Realidade sempre incriada? E a mente não deve deixar de criar, de formular, para experimentar o Não-Criado? ”A Realidade, então, deve ser encontrada no intervalo entre dois pensamentos. Enquanto o homem permanecer escravizado ao pensamento e condicionado pelo pensamento, ele nunca poderá encontrar esse estado indescritível e incondicional de bem-aventurança. A mente é incapaz de transcender suas próprias fronteiras. Por isso, por mais que a mente tente melhorar a si mesma através de vários tipos de disciplinas, práticas e sadhanas, tais ações não serão úteis. No entanto, K se contradiz insistindo que, a menos que aspirantes espirituais trabalhem duro eles nunca conseguirão descobrir o Absoluto. 

Agora, é realmente possível trabalhar sem exercitar a mente? Qualquer manifestação de esforço envolve necessariamente o uso da mente condicionada. K desconfiava  do pensamento ao ponto que ele nos exortava a nunca usá-lo para um propósito espiritual: “Você não pode convidar a Realidade, ela que deve chegar até você; você  não pode escolher a Realidade, ela que deve escolher você. ” Depois de comparar a Realidade a um tipo de graça, ele ainda queria que trabalhássemos duro. O problema é que, no momento em que me envolvo em qualquer atividade dirigida à minha elevação espiritual, eu descobro que invariavelmente ativo o processo de pensamento.


Os ensinamentos de Ramana são desprovidos de confusão no que diz respeito a essa questão de pensamento. Embora reconhecendo plenamente as limitações do pensamento, ele apontou um método útil e prático de usar o pensamento para trazer sua própria morte. Quando perguntaram a Ramana como a mente ficaria quieta, ele respondeu: “Pela pergunta 'Quem sou eu?'. O pensamento 'quem sou eu?' destruirá todos os outros pensamentos e, como a vara usada para agitar a pira em chamas, ela mesma será destruída no final. Então, surgirá a Auto-realização ... Quando outros pensamentos surgirem, não se deve persegui-los, mas deve-se perguntar: 'Para quem eles surgiram?' Não importa quantos pensamentos surjam. À medida que cada pensamento surge, deve-se indagar com diligência: 'Para quem esse pensamento surgiu?'. A resposta que surgiria seria : 'Para mim'. Então, se alguém perguntar "Quem sou eu?", a mente voltará à sua fonte; e o pensamento que surgir se tornará inativo. Com a prática repetida dessa maneira,  a mente desenvolverá a habilidade de manter-se na sua fonte”.

K e Ramana diferiram amplamente na questão da utilidade do pensamento como um meio de alcançar a união com o Absoluto. Segundo K, a mente nunca pode pensar com precisão sobre Deus. Esse pensamento só pode resultar na formação de meras opiniões e crenças que não têm relação alguma com a realidade de Deus. Por que ficar satisfeito com um conceito de Deus que é apenas uma criação fictícia da imaginação? Mas Ramana ensinou que pensar no Ser não é sem valor: “Aquele que se entrega ao Ser que é Deus é o devoto mais excelente. Entregar-se a Deus significa permanecer constantemente no Ser, sem abrir espaço para o surgimento de outros pensamentos que não sejam o Ser. ”

Alguém pode ficar animado pelo fato de Ramana não ver o pensamento em termos de preto e branco. Como a energia nuclear, o pensamento pode ser imensamente destrutivo se usado de maneira errada, mas ele é igualmente capaz de elevar-nos ao limiar da divindade.

K exortou seus ouvintes a estarem constantemente conscientes de seus pensamentos e sentimentos, sem os condenar ou justificar. A perambulação da mente pode ser terminada pensando e sentindo todo o pensamento-sentimento até o fim. Essa consciência envolve evitar julgar ou avaliar o fluxo de sua própria consciência . Durante a década de 1940, ele defendeu uma consciência passiva e sem esforço. Muitas pessoas que experimentaram isso reclamaram que esse método não só era árduo, mas também não conseguia libertá-los. Então, em 1956, K se contradiz: ele afirma que a consciência plena não pode ser mantida o tempo todo. Ele, então, sugeriu um minuto ou dois de total consciência, seguido de um período de relaxamento, durante o qual a pessoa pode observar as operações da mente. “Consciência” é central nos ensinamentos de K. Embora ele insistisse na conscientização como meio de transcender as limitações da mente e chegar à descoberta da verdade (apesar de seu ditado contraditório de que "a verdade é uma terra sem caminho"), é duvidoso que algum de seus ouvintes tenha realmente encontrado a libertação. As milhares de pessoas em vários países que ouviram K não chegaram a lugar algum. Ao observar seus processos de pensamento durante anos, eles descobriram que estavam se tornando cada vez mais envolvidos em pensamentos. Em vez de suas mentes se dissolverem, perceberam, para seu desespero, que estavam se tornando cada vez mais cerebrais.

K sustentou que é pensamento que cria o pensador. O "eu" é apenas uma invenção fictícia do pensamento. Portanto, a dissolução do pensamento resulta automaticamente na dissolução do "eu". Os ensinamentos de K a esse respeito foram diametralmente opostos aos de Ramana, que disse: “De todos os pensamentos que surgem na mente, o pensamento do“ eu ”é o primeiro. É somente após o surgimento disso que os outros pensamentos surgem. ”




Ramana Maharshi (1879 - 1950)

Muito mais importante que a questão da origem do pensamento é a de seu fim. K recusou-se a prescrever quaisquer métodos ou técnicas para esse fim. Ele disse que o pensamento terminará por si só quando houver uma compreensão completa do processo de pensamento. Eventualmente, essa faculdade de entendimento surge quando a mente está livre de pensamentos. É de alguma ajuda saber que alguém chega a esse estado de não-pensamento e que  ele ocorre acidentalmente, sem nenhum esforço?

Eu estive intimamente associado a K e suas atividades em todo o mundo por mais de três décadas. Suas qualidades humanas e afetuosas, bem como seus siddhis (faculdades sobrenaturais) foram descritos neste trabalho : J. Krishnamurti como eu o conheci. Embora sua mente fosse extraordinariamente clara e profunda,  a pessoa fica perplexa com o fato de K ser também um conjunto confuso de contradições. A tarefa de reconciliar os diferentes lados de sua personalidade enigmática não é fácil. Cabe ao leitor descobrir, se possível, quaisquer elementos de unidade e harmonia que possam estar subjacentes às contradições listadas abaixo.

Geralmente, no mundo asiático, as vidas dos santos são caracterizadas por uma certa simplicidade e austeridade. Embora K preconizasse uma vida simples, ele realmente levou uma vida de luxo entre os ricos e famosos. Ele sempre foi o querido e protegido dos ricos e privilegiados. K usava ternos bem feitos e apenas sapatos feitos à mão o agradavam. Que contraste com Ramana e todos os outros sábios de sua linhagem que se contentavam com uma mera tanga! Ele também gostava de viajar em carros motorizados de alta potência. De fato, sua paixão por carros era lendária. Embora ele estivesse cercado de bens materiais, é significativo que ele fosse indiferente a eles. De alguma forma, ele não estava apegado às coisas deste mundo e estava sempre pronto para doar todos os seus pertences aos necessitados.

Com toda a retórica que conseguiu reunir, K denunciou as atividades de todos gurus a quem ele equiparou aos exploradores dos crédulos. Ele insistia na absoluta  autoconfiança em assuntos espirituais. Aqueles que estão confusos, agindo de sua própria confusão, não podem deixar de escolher  gurus que também estão confusos. Os que conseguem ver claramente não precisam de gurus, argumentou, porque são luzes para si mesmos. Pode ser que sim, mas quantos têm essa rara clareza que caracteriza os iluminados? Ao denunciar todos os gurus, ele não estava fazendo injustiça àquela minoria de gurus auto-realizados que são realmente genuínos? Ao lançar críticas sobre outros professores, ele não estava promovendo sutilmente seus próprios ensinamentos? Embora ele tenha criticado severamente a instituição do guru, ele não era, ele mesmo, para todos os efeitos, uma espécie de guru? Obviamente, K não tinha barba  nem usava roupas cor de açafrão, mas ele era o instrutor espiritual de milhares de seus admiradores. Como qualquer outro guru, K aconselhou inúmeras pessoas que tinham problemas psicológicos. Para os aflitos, ele prescreveu sadhanas em particular, apesar de sua oposição publicamente declarada a todas as práticas espirituais.

K repreendeu os fotógrafos que tentaram tirar fotos de seu rosto radiante. Mas ele não se importava de ser fotografado por pessoas especialmente selecionadas. No final de sua vida, havia até um fotógrafo oficial! Ele tentou criar a impressão de que desaprovava a glorificação de sua personalidade. No entanto, ele permitiu o uso de seu nome para o estabelecimento de várias fundações, centros de informação e escolas. Ele logo se tornou o expositor de um corpo de ensinamentos que deu origem a um culto. Os seguidores de K se ressentem da palavra 'guru', mas ele não é uma figura paterna respeitada para eles?

K abominava todos os ashrams (mosteiros). Ele afirmou que a meditação, que é uma viagem de autodescoberta, deve ser feita individualmente e nunca na presença restritiva de um conjunto de pessoas. Então ele descreveu a meditação coletiva como uma "vulgaridade". Ele considerava os ashrams como "campos de concentração" onde a mente está sujeita a influências condicionantes. No entanto, K foi responsável por iniciar vários centros educacionais, onde   estudantes e professores  deveriam dedicar muito tempo à auto-observação enquanto vivem em comunidade. Durante sua vida, K orientou regularmente seus seguidores nesses centros, que são realmente, ashrams em essência.

Religiões organizadas e outras organizações espirituais foram veementemente condenadas por K. Então, em 1929, após 18 anos de existência, K dissolveu sua própria Ordem da Estrela. Foi um ato ousado que resultou em milhares de discípulos seus se sentindo perdidos e sem liderança. Depois de declarar que "minha única preocupação é libertar os homens de maneira absoluta e incondicional", por que ele mais tarde na vida (na década de 1960) estabeleceu várias Fundações Krishnamurti pelo mundo? O que ele fez foi claramente inconsistente com sua oposição anterior às organizações. Muitos de seus amigos ficaram desiludidos com ele. Alguns mantiveram-se afastados de suas conversas como sinal de protesto. A reputação da integridade de K foi severamente abalada e a situação piorou quando alguns dos administradores de suas organizações começaram a abusar de seus poderes . Vastas somas de dinheiro foram coletadas em seu nome e, no momento de sua morte em 1986, essas organizações ricas estavam repletas de intrigas e lutas pelo poder. O que originalmente era um ensinamento puro, com ênfase na autoconfiança e na auto-observação com vistas à purificação da mente, estava tristemente viciado pela atração pelo ouro e pelos bens imobiliários. Esse foi o aspecto infeliz do legado de K.

A única explicação do comportamento estranho de K é que ele foi facilmente influenciado por aqueles que o cercavam. Sua mente era tão maleável que era facilmente manipulada por pessoas sem escrúpulos, em proveito próprio. Foi essa qualidade de abertura inocente que ajudou a torná-lo um excelente médium. Voltaremos a esse tema mais adiante neste ensaio.

Quando o bispo Leadbeater descobriu o menino K, os teosofistas foram rápidos em reconhecer a mente vazia do jovem, com seu enorme potencial espiritual. Ele tinha uma certa imprecisão e abertura e todos os ingredientes de um maravilhoso  “canal”. Então, eles declararam que K estava destinado a ser o "Veículo do Instrutor do Mundo". Deve-se notar que K seria apenas o veículo escolhido, o médium ou porta-voz do Senhor Maitreya, o futuro Buda, e não o Grande Mestre. Como o profeta Maomé, seu papel era o de um mero mensageiro. Os mensageiros de Deus precisam ser fiéis porta-vozes da palavra sagrada, mas não precisam necessariamente ser divinos.

Quando perguntavam a K se ele era de fato o Instrutor do Mundo, ele evitava a pergunta dizendo que os ensinamentos é que são importantes e não o rótulo ou a designação dada à pessoa que os expressa. O que importa é a música e não o nome do cantor. No entanto, K nunca negou seu destino especial. Ele estava profundamente consciente de sua missão extraordinária na vida, apesar das repetidas negações de não ter qualquer imagem de si mesmo.

Será que K, na maioria das vezes, era apenas um ser humano comum, que às vezes dava expressão às mensagens divinas? Se aceitarmos essa possibilidade, como alguns teosofistas aceitam, ajuda consideravelmente a entender a natureza dual de K. Isso explica suas muitas contradições.

Nenhum relato de K é completo sem uma referência à sua grande compaixão por todos os seres. Ele amava todos igualmente, mas ele parecia ter favoritos. Ele estava seriamente preocupado com o problema do sofrimento humano e sentiu sinceramente que era sua responsabilidade pessoal aliviá-lo. Seu amor ilimitado chegou até aos animais selvagens que conheceu no decorrer de seus passeios solitários em selvas e outros lugares. Ele não tinha medo de animais perigosos e, a esse respeito, ele era como Ramana. Os budistas acreditam que a compaixão seria a característica predominante do futuro Buda Maitreya. É realmente significativo que K fosse uma personificação da bondade amorosa; também é digno de nota que seus ensinamentos têm um sabor budista. Será, então, que ele era um prenúncio do Iluminado do Futuro ?

Quando jovem, K compôs poemas místicos. O que se segue é um trecho de uma de suas obras poéticas intitulada O Amigo Imortal, em que K descreve uma visão que ele teve --- uma visão do Buda.


Fiquei sonhando em uma sala de grande silêncio.
O início da manhã estava calmo e  sem-respiração,
As grandes montanhas azuis estavam contra a escuridão
céu frio e claro,
Em volta da casa escura
Os pássaros pretos e amarelos estavam dando as boas-vindas
ao Sol

Sentei no chão, com as pernas cruzadas, meditando,
Esquecendo as montanhas ensolaradas,
Os pássaros,
O imenso silêncio,
E o sol dourado.

Perdi a sensação do meu corpo,
Meus membros estavam imóveis,
Relaxado e em paz.
Uma grande alegria de profundidade insondável encheu meu coração.
Ansiosa e afiada estava  minha mente, concentrada.
Perdido para o mundo transitório,
Eu estava cheio de força.

Como a brisa oriental
Que de repente surge
E acalma o mundo cansado,
Lá na minha frente
Sentado de pernas cruzadas,
Como o mundo O conhece
Em suas vestes amarelas, simples e magníficas,
Estava o Instrutor dos instrutores.

Olhando para mim,
Imóvel, o Poderoso Ser estava sentado.
Eu olhei e abaixei minha cabeça,
Meu corpo se inclinou para frente.

Aquele olhar
Mostrou o progresso do mundo,
Mostrou a imensa distância entre o mundo
E o maior de seus professores.
Quão poucos entenderam,
E quanto Ele deu.
Quão alegremente Ele subiu,
Escapando do nascimento e da morte,
De sua tirania e roda emaranhada.

Iluminação alcançada,
Ele deu ao mundo a Verdade,
como a flor dá
Seu perfume,

Como eu olhei
Os pés sagrados que outrora pisaram as felizes
Poeira da Índia,
Meu coração derramou-se em devoção,
Ilimitado e insondável,
Sem restrição e sem esforço.


O fato de K ter certas deficiências era motivo de considerável tristeza para as milhares de pessoas que o adoravam. Será que K era interiormente um mestre espiritual totalmente transformado, apesar de todas as imperfeições que eram evidentes em seu comportamento externo? Quem sou eu para julgar? Talvez seja melhor ignorar sua personalidade, esquecer o homem K que não existe mais e concentrar-se nos maravilhosos ensinamentos espirituais que foram dados ao mundo ao mundo por seu intermédio.

Susunaga Weeraperuma

Fonte:


Tradução: Alsibar