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domingo, 24 de fevereiro de 2013

O ZEN, DOGEN E A MEDITAÇÃO - Segunda Parte - The Zen, Dogen and the Meditation

Dogen, reformador e revitalizador do Zen- Budismo


A presença de Dôgen

Dôgen destaca-se como uma das mais importantes figuras criativas da humanidade. Foi um grande reformador e revitalizador da tradição budista japonesa na virada do século XIII. Foi ele o introdutor da tradição Soto Zen no Japão. Foi sobretudo a partir da década de 1930 que ocorreu uma recepção mais ampla de seu pensamento, quando passa a ser percebido como "um guia espiritual da humanidade" . Sua inserção mais viva no âmbito dos estudos do budismo é firmada no período do pós-guerra, ou seja, a partir de 1945, quando se intensificam os esforços de incorporar Dôgen "no contexto histórico, social e cultural no qual se formou o seu pensamento" (JIM KIM, 2010, p. 21-23).
Grande parte dos trabalhos de recuperação do pensamento de Dôgen, em particular de sua obra capital, o Shôbôgenzô, foram realizados no Oriente. Não só estudos importantes visando a compreensão dessa obra, como também de outros escritos do mestre da tradição Soto. Ocorreram investigações não apenas nos âmbitos filosófico-religiosos, mas também linguístico, textual e literário. Não houve, infelizmente, um semelhante acompanhamento reflexivo sobre a obra de Dôgen no Ocidente. Os trabalhos de difusão do budismo zen no Ocidente foram favorecidos pela reflexão de D.T. Suzuki, com base sobretudo no Zen Rinzai (JIM KIM, 2010, p. 24).
Muitas são as dificuldades de acesso ao complexo pensamento de Dôgen. Não só a sua reflexão, como também sua linguagem "são extremamente difíceis e sutis, e entretanto irresistivelmente intrigantes" (JIM KIM, 2010, p. 24). O contato com sua obra abre inusitados horizontes para a reflexão e uma visada inovadora para a compreensão efetiva e aprofundada do zen budismo. Daí a escolha de seu itinerário como base para o presente ensaio.

Dôgen nasce em janeiro de 1200 numa família aristocrática. Sua vida foi marcada pela experiência precoce da impermanência, tendo perdido o seu pai em 1202 e sua mãe um pouco depois, quando tinha apenas sete anos. Apesar das dificuldades decorrentes dessas perdas, conseguiu ter uma formação linguística e cultural refinada, e isso pode ser observado na sua excelência poética. Não se deixou abater pelo pessimismo, que também rondava sua época, mas reforçou a dinâmica de seu caminho com substantiva vitalidade. Ele dizia: "Com uma vida assim transitória, não deveria haver outro empenho senão a Via" (JIM KIM, 2010, p. 40)

Depois da perda de seus pais, Dôgen passou a ser criado pelo irmão mais jovem de sua mãe, Fujiwara Moroie, que previa para o menino uma carreira aristocrática brilhante. O destino, porém, reservou-lhe uma sorte diversa, tendo decidido pelo caminho monacal. Entra no noviciado em 1213, com a idade de 13 anos, em ofício dirigido por Kôen, então abade do templo Enryakuji, no monte Hiei. Inicia-se ali o seu estudo sistemático dos sutras budistas. No curso de seus estudos deparou-se com uma interrogação que o acompanhará por muitos anos: Se todos os seres humanos são dotados da natureza de Buda desde o nascimento, por que então os budistas de todos os tempos buscam incessantemente a iluminação, empenhando-se na prática espiritual? Trata-se de uma interrogação que ninguém no monte Hiei conseguiu fornecer uma resposta satisfatória (JIM KIM, 2010, p. 40-41).

Segue o seu caminho com essa delicada questão na bagagem. Passa pelo templo de Onjôji, na província de Omi, sob os cuidados do mestre Koin (1145-1216). Este o envia ao templo de Kenninji, em Kyoto, tornando-se então aluno de Myozen (1184-1225), discípulo de Eisai, que tinha introduzido o Zen Rinzai no Japão. Dôgen relata no Bendôwa esse encontro:
"Depois de ter despertado o desejo de iluminação e de busca da Via, vaguei por este país buscando o conhecimento. Foi quando então encontrei o mestre Myozen no templo Kenninji. Passaram-se rapidamente nove anos e estando com o mestre nesse período aprendi diversas coisas da tradição Rinzai. Myozen era o principal discípulo do fundador (do Rinzai) Eisai e era o único a ter recebido a correta transmissão suprema do budismo" (DÔGEN, 2001a, p. 125).

É no encontro com Myozen que Dôgen toma ciência do budismo zen, e reconhecia que nenhum outro mestre se igualava a ele na dinâmica de transmissão correta do budismo. Mas mesmo a presença desse mestre não respondeu ao sentimento de insatisfação que o acompanhava desde os tempos de sua estadia no monte Hiei. Identificava limites no ensinamento dos mestres japoneses, que a seu ver não conseguiam penetrar a "compreensão intelectual da doutrina". Não logravam transmitir a seus discípulos senão "palavras e letras", ou "nomes e sons". Dôgen ansiava por algo ainda mais profundo. Decidiu então empreender nova aventura em viagem à China, para buscar conhecimento entre os grandes mestres fundadores. Entendia que ali poderia encontrar o "melhor do budismo". Assinalava que seria melhor não estudar o budismo na ausência de um verdadeiro mestre (JIM KIM, 2010, p. 45).

Em 1223, Dôgen parte para a China, em difícil viagem marítima. Junto com ele, o mestre Myozen. Sua intenção era a de aprofundar os estudos em mosteiros da tradição zen. Num dos pontos de ancoragem do navio, ocorreu um dos famosos episódios do encontro de Dôgen com um monge cozinheiro chinês, de 61 anos, que veio ao navio em busca de shitake japonês, junto aos mercadores a bordo. O singular diálogo travado entre os dois vem relatado no livro de Dôgen, Instruções a um cozinheiro zen (Tenzo kyokun), publicado em 1237 (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 23-25). Estranhando essa tarefa exercida por um monge em final de carreira, Dôgen indaga ao cozinheiro se não seria mais pertinente dedicar seu tempo à prática do zazen ou ao estudo dos koans, em vez de um trabalho duro como o de tenzo. Em resposta, o velho monge desatou em risos e fez a seguinte observação: "Meu bom amigo estrangeiro! Tu não compreendes ainda em que consiste a prática, nem conhece o significado dos caracteres". Foi uma verdadeira lição para Dôgen, como uma luz que se acendeu em sua consciência, acionando uma compreensão distinta e novidadeira do zen . Pôde perceber que no simples e cotidiano trabalho na cozinha, como tenzo, alguém pode viver plenamente a experiência do zen autêntico, do budadarma. 

Nessa obra citada, Tenzo Kyokun, escrita mais de uma década depois desse encontro, Dôgen reconhece que o trabalho de cozinheiro na tradição zen só vem exercido por "mestres estáveis na Via", ou por mestres que despertaram em si o espírito do bodhisattva. Ao longo dos séculos, essa nobre tarefa veio exercida por grandes mestres e patriarcas, recorda Dôgen. É um trabalho que toca um dos temas mais fundamentais da tradição zen, ou seja, o espírito de cuidado e atenção. Nada mais importante, relata Dôgen, do que preparar o alimento com aplicação e poder ocupar-se pessoalmente de cada detalhe do preparo das refeições. Diz ele: "Deixe que, dia e noite, todas as coisas entrem e permaneçam em vossa mente. Cuide para que vossa mente e todas as coisas possam agir conjuntamente como um todo". Nada mais sagrado do que essa harmonização da vida com o trabalho. Diz ainda: "Manuseie uma única folha de verdura de modo a que manifeste o corpo do Buda" (DÔGEN;RÔSHI, 1986, p. 19 e 21).

Na China, Dôgen visitou vários mosteiros junto com o mestre Myozen. Na ocasião o budismo chinês vivia uma situação de dificuldade e declínio. Eram múltiplas as causas dessa situação, entre as quais a degeneração moral da comunidade monástica em razão da venda pelo governo de certificados monásticos e títulos honoríficos para fazer frente à crise financeira. Nesse contexto desfavorável mestres zen passaram a se envolver na política e os mosteiros dessa tradição tornaram-se centros de vida social e política. Dôgen expressa seu descontentamento com tudo isso, e reage contra o empobrecimento daqueles que se proclamam descendentes do Buda e o enfraquecimento do ensinamento da Via (JIM KIM, 2010, p. 49). As crítica de Dôgen voltavam-se não apenas à situação geral do budismo, mas também à ordem Rinzai, muito popular na época.

As viagens realizadas por Dôgen pela China favoreceram a ele um bom conhecimento do budismo chinês, mas não lhe possibilitaram o acesso a um verdadeiro mestre. Marcado por certa desilusão, resolveu voltar ao Japão. Decide fazer uma última visita ao monte T´ien-t´ung, onde estava adoentado o seu mestre Myozen. No templo de Chiug-shan Wan-shoussu, Dôgen encontra um velho monge que acende nova luz em seu caminho ao falar de um famoso mestre, Ju-Ching (1163-1228) , que assumia a função de abade no mosteiro de Ching-te-ssu, no monte T´ien-t´ung. Foi a senha que precisava para realizar um encontro que marcou decisivamente a sua vida. O contato com Ju-Ching aconteceu no quinto mês de 1225. O acolhimento foi caloroso, e entre os dois ocorreu o desvelamento do mistério do Dharma.

O mestre Ju-ching reagia às divisões sectárias do budismo e aspirava a um budismo aberto e universalizante. Não gostava nem mesmo de nomear sua prática como sendo zen. O objetivo essencial de seu trabalho era aprofundar o Dharma. Ao tratar da personalidade desse mestre, Dôgen assinala o seu traço dinâmico e carismático e sua intransigente defesa do só-zazen, entendido como caminho essencial do budismo. Para Ju-Ching, segundo a descrição tecida por Dôgen a seu respeito, o budismo "não devia reverenciar nada daquilo que sinalizasse glória e poderes mundanos; devia, sim, contentar-se com a virtude da pobreza e do viver na profunda paz das montanhas. O Dharma deveria ser buscado para o bem do Dharma" (JIM KIM, 2010, p. 56).

Momento decisivo na experiência de aprendizado de Dôgen sob a guia de Ju-Ching ocorreu em 1225. No decorrer de uma prática de zazen, na primeira manha de um retiro intensivo (Geango), um monge que estava ao seu lado adormeceu. Em advertência a tal acontecimento inesperado, Ju-Ching bradou com firmeza em sua direção: "No zazen é imperativo abandonar o corpo e a mente. Como pode podes ceder ao sono?". O toque dado por Ju-Ching acabou fazendo efeito em Dôgen, que sentiu todo o seu ser estremecer, provocando a experiência de uma grande alegria em seu coração. Na mesma manhã, nos aposentos de Ju-Ching, Dôgen ofereceu incenso e se prostrou diante da imagem de Buda. Admirado pela atitude de Dôgen, o mestre Ju-Ching perguntou-lhe sobre a razão de tal procedimento. Recebeu como resposta uma frase reveladora: "O meu corpo e a minha mente foram abandonados!". Uma expressão que se tornou célebre no livro Genjo koan do Shôbôgenzô: shinjin datsuraku (deixar cair o corpo e a mente) . Diante da exuberância da resposta de Dôgen, e sua certeira percepção, Ju-Ching reconheceu a autenticidade de sua iluminação. No nono mês de 1225, ele conferiu a Dôgen, um monge japonês, o certificado oficial da sucessão patriarcal da linha Chen-hsieh da Ordem Tsao-tung, uma novidade na história do budismo chinês (JIM KIM, 2010, p. 59).

Dôgen, finalmente, conseguia a resposta à questão que tanto lhe angustiara durante muitos anos, desde os tempos de sua presença no monte Hiei. Na certeira percepção desse "deixar cair corpo e mente" estava a chave de acesso à compreensão da natureza búdica. Através da prática do só-zazen, do simplesmente sentar (shikantaza), consegue, finalmente, acessar a perspectiva de uma existência não dualística. E este "abandonar corpo e mente" não anulava, em hipótese alguma, a existência histórica e social, mas a acionava numa perspectiva nova e distinta, de modo a facultar a "encarnação auto-criativa e auto-expressiva da natureza-do-Buda" (JIM KIM, 2010, p. 59).
Durante dois intensos anos, entre 1225 e 1227, os dois mestres viveram uma rica experiência de prática e ensino comuns na busca da verdadeira compreensão do Dharma. Em 1227, Dôgen expressou ao seu mestre o desejo de retornar ao Japão, recebendo na ocasião o hábito sacerdotal, que é o documento genealógico da sucessão patriarcal.

O mestre Dôgen retornou ao Japão com as "mãos esvaziadas" de sutras, imagens ou documentos. Trazia para seus conterrâneos apenas o seu corpo, a sua mente e sua existência, agora libertados das amarras do ego e radicalmente transformados. Esse retorno ocorreu, provavelmente, no outono de 1227. Ele logo assume o templo Kenninji, depois dos anos de ausência. Nesse mesmo ano escreve o breve texto do Fukan zazengi, com os conselhos práticos em torno do zazen. É um livro que não faz parte do Shôbôgenzô, mas que expressa um traço importante do ensinamento de Dôgen, sendo a primeira descrição do zazen realizada por um autor japonês (TOLLINI, 2001, p. 47).

O tempo de permanência de Dôgen em Kenninji foi de três anos. Depois deslocou-se para o templo de An´yoin em Fukakusa, onde escreveu um dos clássicos livros do Shôbôgenzô, o Bendôwa, que é na verdade um discurso sobre a prática da Via. Trata-se de uma obra que desvela os traços fundamentais do ensinamento de Dôgen. Com esses dois primeiros escritos, Dôgen lança as bases de sua concepção religiosa e filosófica.
Com o crescimento de seus discípulos, Dôgen transfere-se para o templo de Kosho-horinji – uma ampliação do original Kannon-dorin -, onde permanece por dez anos (1233-1243). Foi, talvez, o período mais criativo para ele, compondo simplesmente quarenta e quatro capítulos do Shôbôgenzô, entre os quais alguns de grande importância como o Genjo-koan e o Bussho. Foi também ali que acolheu Koun Ejo (1198-1280) como seu discípulo. Entre os dois nasceu uma forte amizade, que os manteve ligados por quase vinte anos, até a morte de Dôgen . Os dois trabalharam juntos para a afirmação do Soto Zen no Japão.

O templo de Kosho-horinji foi um espaço aberto à comunidade, traduzindo uma preocupação sempre presente em Dôgen, de fazer do budismo uma "religião do povo". Num de seus breves e belos livros, Shôji, que trata dos nascimentos e mortes, Dôgen expressa sua ideia da compaixão ilimitada. Assinala que a estrada que conduz ao despertar passa necessariamente por uma "profunda compaixão por todos os seres". Para que isso ocorra é necessário um coração liberado do pequeno eu egoísta, de forma a poder acolher e ressoar com todos os seres do universo (DÔGEN, 2007, p. 353).

A itinerância de Dôgen continuou pelos templos de Kippoji e depois Daibutsuji, onde se estabeleceu no sétimo mês de 1244. Em junho de 1246, mudou o nome do templo para Eiheiji, que significa paz eterna. Consegue, então, realizar o seu sonho de "fundar uma comunidade monástica ideal segundo os ditames de Po-chang Huai-hai (720-814), no coração das montanhas e dos cursos de água" (JIM KIM, 2010, p. 71). Nesse templo escreveu oito capítulos do Shôbôgenzô, mas dedicou-se sobretudo à formulação dos preceitos e regras de consolidação da vida monástica. O mosteiro de Eiheiji tornou-se um importante ponto de referência como comunidade educativa e religiosa.
A saúde de Dôgen começou a agravar-se a partir de 1250, limitando suas atividades monásticas. Escreve ainda um derradeiro capítulo do Shôbôgenzô, em 1253 – o Hachi-dainingaku -, expressando uma última mensagem a seus discípulos, já prevendo a proximidade de sua morte. Ele nomeia Ejo como seu sucessor em 1253 e no oitavo mês do mesmo ano vem a falecer, junto a seus discípulos, em postura de zazen.

(Fim da segunda parte, continua…)
Autor: Dr. Faustino Teixeira - UFJF
Recebido por email , remetente : Akira


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