A BELEZA
DA MONTANHA
Lembranças
de Krishnamurti
(Friedrich Grohe)
PREFÁCIO
Estas
lembranças de Krishnamurti, ou “K” como ele muitas vezes referia-se a si mesmo,
compreendem os três últimos anos de sua vida, durante os quais convivi
pessoalmente com ele. A maioria das pessoas conhece Krishnamurti através de
seus livros e fitas, ou por terem assistido às palestras públicas que ele
costumava fazer pelo mundo. Várias vezes K disse sobre si mesmo: A
pessoa não é importante, mas o que ela diz é. Mesmo assim, encontrei
muitas pessoas ardentemente interessadas em saber como ele levava sua vida
diária. Por isso gostaria de lembrar aqui eventos aparentemente insignificantes
que, contudo, podem mostrar que este extraordinário ser humano de fato viveu os
chamados “Ensinamentos”.
Os
Ensinamentos contém grande beleza, e a beleza só pode existir quando o “ego”
está ausente – como K freqüentemente apontou. Assim, ele mesmo era sem “eu”.
Gostaria de
citar aqui uma passagem do livro Questions and Answers:
“Pergunta:
Entendi
as coisas que discutimos aqui durante estes encontros, mesmo que só
intelectualmente. Acho que são verdadeiras num sentido profundo. Agora, quando
voltar para meu país, devo falar sobre seus ensinamentos com amigos? Ou, desde
que sou ainda um ser humano fragmentado, apenas provocarei mais confusão e
prejuízo falando sobre eles?
Krishnamurti:
Toda
pregação religiosa dos sacerdotes, dos gurus é divulgada por seres humanos
fragmentados. Embora digam, “Somos seres humanos superiores”, eles são ainda
seres humanos fragmentados. E o interrogante diz: “De algum modo entendi o que
você diz, parcialmente, não completamente; não sou um ser humano transformado.
Entendo, e quero falar para outros o que entendi. Não digo que entendi o todo,
entendi uma parte. Sei que é fragmentado, sei que não está completo, não estou
interpretando os ensinamentos, estou apenas informando o que entendi.” Bem, o
que há de errado nisso? Mas se você diz: “Compreendi o todo completamente e
estou lhe contando” – aí você se torna uma autoridade, o intérprete; tal pessoa
é um perigo, ela corrompe outras pessoas. Mas se vi algo que é verdadeiro, não
estou iludido; é verdade e nisto há uma certa afeição, amor, compaixão; sinto
isso muito fortemente – então naturalmente eu não posso evitar falar para
outros; seria bobagem dizer que não o farei. Mas previno meus amigos, digo,
“Olhem, tenham cuidado, não me coloquem num pedestal”. O orador não está num
pedestal. Este pedestal, esta plataforma, é só por conveniência; não lhe
confere nenhuma autoridade. Mas como o mundo é, os seres humanos estão ligados
a uma coisa ou outra – a uma crença, a uma pessoa, a uma idéia, uma ilusão, um
dogma – assim eles são corrompidos; e o corrompido fala e nós, estando também
de algum modo corrompidos, nos juntamos à multidão.
Vendo a
beleza destas montanhas, o rio, a extraordinária tranqüilidade de uma nova
manhã, o contorno das montanhas, os vales, as sombras, como tudo está em
proporção, vendo tudo isso, você não escreverá para seus amigos dizendo,
“Venham aqui, vejam isto”? Você não estará interessado em si mesmo mas apenas
na beleza da montanha.”
Nessas
reminiscências, gostaria de partilhar com meus amigos, e com quem mais possa
estar interessado, a beleza da montanha.
INTRODUÇÃO
Durante um
período de mais de setenta anos Krishnamurti proferiu milhares de palestras
públicas e debates em muitos países mas nunca disse uma palavra em excesso. Seu
discurso era preciso e claro, e sua aparência elegante e bem cuidada. Ele era
basicamente reservado, ou como algumas vezes observou, tímido. No entanto,
daria toda sua atenção a quem quer que se dirigisse a ele, se interessando por
todos os aspectos e detalhes. Seu amor pelas pessoas significava que qualquer
um podia aproximar-se dele.
Desde 1983 –
quando o conheci – estive em contato regular com ele, acompanhando-o em alguns
de seus passeios e indo com ele em sua última viagem à Índia; nos encontrávamos
em Brockwood Park, Saanen e Ojai regularmente. Em Brockwood ele providenciou
que eu tivesse um quarto na chamada “West Wing” (Ala Oeste), a parte do
complexo da escola em que ele mesmo vivia.
Desde que
foi criada em 1969, K passava cerca de quatro meses por ano em Brockwood Park.
Porque ele tinha um profundo interesse em iniciar um centro de estudos para
adultos ali, gostaria de citar sua declaração sobre o significado de Brockwood
Park e do futuro centro.
Brockwood
hoje e no futuro
Há
quatorze anos Brockwood é uma escola. Começou com muitas dificuldades, falta de
dinheiro, e assim por diante, e todos nós ajudamos a construí-la até a presente
condição. Têm havido encontros todos os anos, seminários e todas as atividades
de gravação de áudios e vídeos. Chegamos ao ponto não só de avaliarmos o que
estamos fazendo mas também de fazermos de Brockwood mais do que uma escola.
Embora tenhamos nos encontrado nos últimos vinte e dois anos durante um mês e
pouco em Saanen, Brockwood é o lugar em que K despende mais tempo e energia. A
escola tem uma boa reputação e a sra. Dorothy Simmons colocou nela sua maior
energia, sua paixão. Todos nós ajudamos a construir a escola apesar de grandes
dificuldades, tanto financeiras quanto psicológicas.
Agora
Brockwood deve ser mais do que uma escola. Deve ser um centro para aqueles que
estão profundamente interessados nos Ensinamentos, um lugar onde podem ficar e
estudar.
Antigamente
um “ashrama” – que significa retiro – era um lugar aonde as pessoas iam para
acumular suas energias, morar e explorar aspectos religiosos mais profundos da
vida. Lugares modernos deste tipo geralmente têm algum tipo de líder, guru,
abade ou patriarca que guia, interpreta e domina. Brockwood não deve ter tal
líder ou guru, porque os próprios Ensinamentos são a expressão desta verdade
que as pessoas sérias devem descobrir por si mesmas. O culto pessoal não tem
lugar aqui. Temos que enfatizar este fato.
Infelizmente
nossos cérebros são tão condicionados e limitados pela cultura, a tradição e a
educação que nossas energias ficam encarceradas. Nós caímos em rotinas
confortáveis e nos tornamos psicologicamente inúteis. Para compensar gastamos
nossas energias com interesses materiais e atividades egocêntricas. Brockwood
não deve se render a esta tradição batida. Brockwood é um lugar de
aprendizagem, de aprender a arte de questionar, a arte de explorar. É um lugar
que demanda o despertar da inteligência que surge com a compaixão e o amor.
Não deve se
tornar uma comunidade exclusiva. Geralmente comunidade implica alguma coisa
separada, sectária e fechada em propósitos idealistas e utópicos. Brockwood
deve ser um lugar de integridade, profunda honestidade e do despertar da
inteligência em meio da confusão, do conflito e da destruição que acontecem no
mundo. E isso não depende de qualquer pessoa ou grupo mas da consciência, da
atenção, do afeto das pessoas que lá estão.
Tudo isso
depende das pessoas que vivem em Brockwood e dos curadores da Fundação
Krishnamurti. É deles a responsabilidade de produzir isso.
Assim
cada um tem que contribuir. Isso não se aplica apenas a Brockwood mas a todas
as outras Fundações Krishnamurti. Parece-me que se pode estar perdendo tudo
isso de vista, ficando-se envolvidos profundamente por diversas atividades,
presos em interesses particulares de modo que não se tem tempo nem disposição
para se interessar profundamente pelos Ensinamentos. Se este interesse não existe,
as Fundações não têm significado. A pessoa pode falar indefinidamente sobre o
que são os Ensinamentos, explicar, interpretar, comparar e avaliar mas tudo se
torna superficial e realmente sem significado se a pessoa não está de fato
vivendo os Ensinamentos. Continuará a ser responsabilidade dos curadores
decidir que forma Brockwood terá no futuro, mas Brockwood deverá ser sempre o
lugar onde a integridade pode florescer. Brockwood é um belo lugar com antigas
e magníficas árvores, cercado por campos, prados, bosques e a quietude do
interior. Deve ser sempre mantido assim pois beleza é integridade, bondade e
verdade.
J.
Krishnamurti
1983
PRIMEIROS
ENCONTROS COM K
Foi em 1980
que li pela primeira vez um livro de Krishnamurti, A Questão do
Impossível.
Embora eu
ache que Krishnamurti não pode ser lido como se lê uma novela, não pude
largá-lo. Ele parecia dizer o oposto do que se aprendeu e experimentou. Parece
termos sentido antes vagamente o que ele expressa ali em linguagem clara,
simples e irresistível.
Embora em
1981 eu soubesse que Krishnamurti costumava dar palestras públicas todo ano em
Saanen, Suíça, não tinha vontade de assisti-las já que estava bastante
satisfeito apenas estudando seus livros. De fato, perdi o interesse em
filosofia, psicologia, literatura, arte, que um dia me cativaram, porque de
repente percebi: “É isso!” Os livros de outras pessoas simplesmente tornaram-se
supérfluos.
Este foi um
tempo de grandes mudanças para mim. Além de outras coisas, estava prestes a me
retirar da vida de negócios. Antes eu não tinha muito tempo para encarar
questões essenciais
Mas agora,
de uma vez só, K tornou claro para mim a importância de interessar-se por
assuntos básicos como amor e morte, prazer e dor, liberdade, desejo e medo.
Quanto mais eu explorava os ensinamentos, mais fascinantes eles se tornavam.
Fui pela
primeira vez às palestras de Saanen em 1983. Sentado nos degraus que levavam à
tenda gigantesca onde cerca de duas mil pessoas se reuniam, eu ouviria K. Aqui,
sob a barraca, eu estava protegido do calor e ainda podia aproveitar a brisa
fresca. Como eu em geral vinha caminhando desde Rougemont, o que levava cerca
de uma hora e meia, e chegava logo antes das palestras começarem, podia usar a
entrada lateral e não tinha que sentar entre a multidão. Bem em frente ao
tablado de onde K falava, as pessoas ficavam sentadas de pernas encolhidas e
apertadas umas contra as outras; cada polegada de espaço era altamente
valorizada. Em Saanen e Brockwood as pessoas ficavam a noite inteira na fila em
frente da tenda para serem as primeiras a entrar. Nos Estados Unidos e na Índia
era um pouco mais calmo.
Este
primeiro verão foi tão quente que no meu caminho de volta para Rougemont tomava
banho no rio Fenilbach que normalmente estaria muito frio para que isso fosse
possível. Na tenda podia-se comprar livros de K traduzidos em várias línguas, e
fiquei feliz ao encher minha mochila com eles. Era subjugante ouvi-lo. Ele
emanava tanta energia que eu simplesmente não podia sentar diretamente em
frente a ele. Ele falava simples e claramente, com poucos gestos e sem
retórica. Ouvindo-o eu esquecia comida e bebida e nem notava o calor. Durante
uma palestra, percebi um jovem excitado caminhando entre as filas de pessoas.
Ele abordou uma senhora que usava um colar com um retrato do guru Rajneesh
(“Bhagwan”) e desdenhosamente sacudiu-o. Passou então em frente a K e continuou
chutando os ventiladores que ficavam ao longo da tenda. Conforme se aproximava
de mim, gesticulava para que eu saísse do seu caminho. Esperando um chute, eu
me esquivei embora nada tenha ocorrido. Praguejando, caminhou até K e pegou o
microfone e dirigindo-se a K e à multidão, falou em alemão: Os
seguidores do Rajneesh devem sair, eles não são bem vindos aqui. Virando-se
diretamente para Krishnamurti, ele perguntou-lhe: Não estou certo,
senhor Krishnamurti? O senhor acha isso também? O homem parecia
extremamente agitado, até perigoso. Algumas pessoas da fila da frente recuaram,
e um homem enorme que parecia um boxeur estava a ponto de se atirar sobre ele.
Uma atmosfera de extrema violência espalhou-se na tenda provocando tumulto. Mas
neste exato momento, K interferiu dizendo: Não toque nele! Aparentemente
o intruso gostou e repetiu várias vezes;
Não toque
nele, não toque nele. Krishnamurti
acenou na direção dele, e o homem finalmente se acalmou e deixou a tenda depois
de resmungar mais algumas palavras. K continuou a palestra como se nada
houvesse acontecido.
Um fato
semelhante aconteceu durante uma de suas palestras em Ojai quando uma jovem
saltou sobre a plataforma onde Krishnamurti estava. Ele ficou surpreso mas
imediatamente se controlou e disse a ela que, se ficasse quieta, ele não se
importaria que ela sentasse perto dele na plataforma. Ela de fato ficou quieta,
de vez em quando girando a cabeça e fazendo trejeitos enquanto K continuava a
palestra. No final, ele se inclinou para ela e disse: Acabou.
A primeira
vez que fui às palestras em Saanen ainda não tinha tido contato com as
fundações Krishnamurti ou com as escolas. Logo depois desta primeira visita, li
uma declaração em outro livro de Krishnamurti, Education and the
Significance of Life, que dizia em essência: Se você não está
satisfeito com as escolas existentes, por que não começa sua própria? Isso
me deu a idéia de iniciar uma escola na Suíça. Pensei que o país em que os
grandes educadores Pestalozzi e J.J.Rousseau haviam atuado seria o lugar
adequado para isso. Entrei em contato com o Comitê Krishnamurti em Genebra e
soube que uma professora de Brockwood estava voltando para sua Suíça natal
nesta ocasião. Entrei em contato com ela, e logo depois ela e eu, juntos com
vários outros amigos dela que também se interessaram pelo projeto, começamos a
procurar um prédio adequado para uma escola. Encontramos um lugar muito
interessante em Chandolin, no Valais. Era um hotel antigo, bem preservado,
lindamente localizado com uma vista de Matterhorn, e espaçoso o suficiente para
abrigar cinqüenta ou sessenta alunos. Durante as palestras de Saanen em 1983, K
soube do projeto e pediu para encontrar comigo. Assim, depois da palestra fui
para o Chalet Tannegg, em Gstaad onde ele ficava. Nos encontramos em 1 de
agosto de 1983. Como sabia que K dava uma atenção especial a sua aparência, fui
bem barbeado e bem vestido. Porque as tardes eram muito quentes, pedi que a
reunião fosse pela manhã. Quando nos encontramos, no entanto, ele estava ainda
com uma roupa simples de esporte, pela qual se desculpou. Nesta ocasião percebi
que K podia chegar num lugar calma e silenciosamente, quase sem ser notado. No
seu jeito cuidadoso, perguntou sobre minha vida. Rimos e falamos sobre
alpinismo – eu era um alpinista entusiasmado – e sobre várias outras coisas.
Mostrando a
paisagem do lado de fora, eu disse: Escalei todos estes picos. Ele,
mostrando as florestas e colinas, disse: E eu estive em todas as
trilhas destes bosques.Quando eu disse que as montanhas eram muito mais
bonitas de baixo do que do alto, ele respondeu com um entusiástico Sim!
Ele me
perguntou se eu descia a montanha verticalmente ou em ziguezague. Ficou
impressionado quando contei que algumas vezes descia verticalmente. Ele disse
que quando era jovem gostaria de ter esquiado mas não lhe permitiram pois
consideravam este esporte muito perigoso para ele. No entanto, praticou outros
esportes. Na juventude jogou tênis, era especialista em golfe, caminhadas,
ciclismo e natação. Mais tarde, praticaria caminhadas rápidas todos os dias. E
por toda vida praticou ioga; em seu último mês de vida, seu cozinheiro indiano
se alegrava cada vez que via K fazendo seus exercícios de ioga, o que
demonstrava que ele havia ganho um pouco de energia.
Quando
jovem, ele havia visitado Davos com alguns amigos holandeses, e em Adelboden
morou numa cabana na montanha durante algum tempo. Costumava quebrar o gelo do
poço todo dia para se lavar, até que contraiu bronquite. Ele me contou que uma
vez na Califórnia ficou sozinho numa cabana. Lá havia um gramofone e um único
disco, a Nona Sinfonia de Beethoven. Todo dia ele ouvia, até que sabia tudo de
cor. Costumava ser muito receptivo à música e gostava particularmente de
Beethoven e Mozart, da canção sânscrita e da música clássica moderna.
Quando pessoas
chegavam na cabana e perguntavam sobre o santo que vivia ali, ele dizia que ele
havia acabado de sair.
K tinha
grande senso de humor, como testemunhei em várias ocasiões. Ele se divertiu,
por exemplo, quando lhe falei que nossa firma produzia torneiras sanitárias. Eu
lhe disse como era difícil conseguir que a equipe de trabalho cooperasse e como
eu queria que houvesse relações amistosas entre os colegas. K respondeu: Você
sabe como é difícil conseguir que as pessoas cooperem? Logo descobri
que mesmo nas fundações as pessoas tinham dificuldades de trabalhar juntas. E
eu ainda não sabia nada sobre os problemas nas escolas de Ojai, Brockwood e
Índia.
Quando
falamos sobre a escola que eu queria começar na Suíça, K apontou: É
muito difícil começar uma escola. Nós tentamos na Suíça, na Holanda e na
França, mas não tivemos sucesso até encontrarmos Brockwood. A Inglaterra, com
seu sistema de ensino liberal, mostrou-se o país mais adequado. Escolas sempre
precisam de dinheiro!Respondi, Bem, espero não estar jogando meu
dinheiro pela janela. K riu sinceramente.
A questão de
como realizar algo bom através do uso correto do dinheiro ocupou minha mente
por algum tempo. Depois das devidas considerações, ficou claro para mim que
organizações sociais e ecológicas eram muito limitadas na sua capacidade de
produzir uma mudança fundamental. Mesmo medidas econômicas ou políticas não
pareciam capazes de prevenir significativamente a destruição da terra pela
humanidade. A única possibilidade era uma mudança profunda na psique humana,
junto com o tipo certo de educação. Era esta a intenção das várias escolas de
K. Portanto, quando perguntei a K se ele achava que o dinheiro faria algum bem,
sua resposta simples me surpreendeu.Sabe, um dia uma pessoa me deu algum
dinheiro, e com este dinheiro compramos Brockwood Park.
Embora K
tenha me prevenido sobre o projeto da escola, continuamos com nossos planos.
Mas era difícil encontrar professores, e dificilmente havia perspectiva de
alunos. Visitamos Brockwood nesta ocasião e, durante o almoço, mostrei a K
algumas fotografias de Chandolin. De repente ele se virou para a professora
suíça e perguntou, apontando para mim: Ele é o dinheiro. Você
construiria uma escola sem ele? Ela não pode dar uma resposta clara.
Então ele virou-se para mim e perguntou: Você tem os professores
certos, os alunos certos e os pais certos? Neste momento, as coisas
assumiram sua dimensão. Não tínhamos nada disso. Ficou claro para mim, então,
que não fazia sentido começar uma escola nova quando já havia escolas das
fundações Krishnamurti na Inglaterra, Índia e Estados Unidos. Estas ele
visitava regularmente, investindo muito tempo e energia nelas. Percebi que era
muito mais importante ajudar as escolas existentes em suas dificuldades
financeiras e outras do que começar novas.
Além de dar
palestras públicas para milhares de pessoas, K conversava regularmente com
alunos, professores e equipes das escolas e fundações, individualmente ou em
grupos. Ele tinha extraordinária habilidade para resolver problemas práticos,
tendo muito cuidado com detalhes. Sabia exatamente onde estava a causa real dos
problemas. Eu lhe disse certa vez que ele teria sido um excelente empresário,
se houvesse optado pelos negócios. Ele riu.
Esta troca
ocorreu depois que o conheci um pouco melhor. Mas mesmo durante nossos
primeiros encontros, ele mostrava ser flexível, uma pessoa de mente aberta, com
grande senso de humor; um homem modesto e de genuína bondade. Eu estava muito
interessado em como uma pessoa com “insights” tão esmagadores vivia sua vida
diária, que tipo de pessoa era ele. Ele não tinha aborrecimentos e anseios?
Nunca ficava furioso, violento ou angustiado? Não dava para imaginar como um
ser humano sem ego – como ele – podia viver neste mundo. Mary Lutyens, que o
conhecia desde quase toda sua vida e que era sua biografa autorizada, não foi
capaz de responder a pergunta sobre quem ele de fato era. Se perguntado
diretamente ele diria: Não sei, mas você pode descobrir.
VISITA A
BUCHILLON
Em agosto de
1983, K visitou-me em Buchillon em seu caminho entre Saanen e o aeroporto de
Genebra. Nos encontramos no belo pátio do Chateau Allaman, com suas magníficas
árvores. K entrou em meu carro, enquanto Mary Zimbalist e o doutor Pachure, que
o acompanhavam, nos seguiram no carro deles. Dirigindo para Buchillon, tinha a
estranha sensação de que não havia ninguém a meu lado. Várias pessoas me
disseram depois que tinham tido experiências semelhantes com K. Depois disso,
todas as vezes que ele declarou: Não sou ninguém, lembrava-me
deste incidente.
Nesta
ocasião conversei com ele, embora sentisse que de algum modo eu o estava
perturbando. Quando perguntei se ele conhecia esta região, imediatamente
respondeu. No entanto, tive a sensação de que ele havia voltado de um lugar
remoto para responder.
Em várias
ocasiões K observou que dificilmente tinha lembranças do passado, e que não
carregar este fardo lhe dava tremenda energia. Em Rishi Valley encontramos um
velhinho que insistia que conhecia K há muitos anos. K não lembrava dele e
depois me disse:Tout le monde connaît le singe, mais le singe ne connaît
personne. (Todos conhecem o macaco, mas o macaco não conhece ninguém.)
Depois de
chegarmos a Buchillon, fomos até o Lago. K parou na trilha entre as árvores,
escutou, e disse: Silêncio. Ele provavelmente estava se
referindo apenas ao silêncio exterior. Aí, também, ele pegou um galho quebrado
no caminho e cuidadosamente colocou-o de lado. Deu uma olhada no sistema de
irrigação e imediatamente percebeu como funcionava. Também identificou a
Araucária em frente da casa, mesmo ela sendo bastante exótica, e mostrou para
Mary as particularmente belas petúnias que eu cultivava na jardineira. Na
margem do lago, ele me disse que muitos anos atrás ele e seu irmão haviam
passado um feriado em Amphion, na outra margem, entre Thonon e Evian. O hotel
em que ficaram não era muito confortável. Não havia nem mesmo água quente
suficiente para que eles se aquecessem depois de nadarem no lago gelado. K
admitiu que esta foi a causa de seu irmão ter contraído a tuberculose que
finalmente levou-o a morte em Ojai em 1925.
Um ano
depois, em seu caminho para Saanen, K parou para almoçar em Buchillon. Quando
entrou na sala de refeições, exclamou: Huh! E cobriu os olhos
por um momento. Havia várias pinturas com cores fortes nas paredes. Durante o
almoço ele olhou cuidadosamente um quadro pendurado na parede em frente a ele.
O que quer que K olhasse, fazia-o intensamente e por longo tempo. Ele me contou
como, antes da guerra, em Paris, lhe foi mostrado o quadro Guernica de
Picasso. Depois de observá-lo por longo tempo, perguntou: O que é tudo
isso? Goya era um artista que K apreciava, entre outras razões, talvez
porque ele tenha dito que ainda estava aprendendo aos noventa anos de idade,
mas ele achava que os artistas modernos só aumentavam a confusão geral e a
divisão ao expressarem o caos, a agressividade e a fragmentação.
Quando em
Brockwood, fui convidado para ir às reuniões de K com os professores, a equipe
e os alunos. Nestes encontros todos pareciam terrivelmente sérios quando K
chegava na sala. Ele sentava de frente para o grupo encarando um por um.
Sentia-me feliz por ter sido convidado para a reunião e, por isso, dei-lhe um
grande sorriso quando ele olhou para mim. Radiante ele sorriu de volta, de um
modo que ninguém havia feito antes. As pessoas em minha frente se viraram para
ver o que estava acontecendo atrás delas.
OJAI
Em maio de 1984
fui para Ojai, para as palestras. Foi me dito que “Ojai” na linguagem dos
índios americanos significa “o ninho”. Uma grande sensação de paz impregnava
todo o vale; era possível senti-la quando se chegava em Ventura, especialmente
no crepúsculo ou durante o anoitecer. Retornando regularmente, K passou grande
parte de sua vida em Ojai, e foi ali que, em 1925, a morte levou seu irmão e,
em 1986, o próprio K. Onde quer que K vivesse, convidava para o almoço
amigos e outras pessoas interessantes com quem ele quisesse conversar. Este era
o costume em Saanen e Rajghat, e também em Madras e Rishi Valley; mas não em
Brockwood, onde ele almoçava na sala de refeições com os alunos e a equipe de
trabalho. Michael Krohnen, que aprendeu a cozinhar com Alan Hooker, proprietário
do famoso Ranch House Restaurant, era o chef em Ojai. Além de
preparar as refeições, era tarefa informal de Michael durante o almoço dar as
notícias do mundo para Krishnamurti. Ele era naturalmente bem dotado para esta
tarefa; Michael tinha também um voz forte e K ficou um pouco surdo no fim da
vida. Numa ocasião K comentou rindo: Primeiro vão se os dentes, depois
os ouvidos e os olhos e, finalmente você desce à terra. Noutra ocasião
citou um provérbio italiano: Todo mundo tem que morrer; talvez eu
também.
Em Ojai
havia um buffet de self service, e depois da refeição todos pegavam seus pratos
e levavam para lavar na cozinha. K servia-se por último e depois levava sua
bandeja para a cozinha como todos os outros, inclusive as panelas. Quando
chegava para o almoço, costumava ir até a cozinha primeiro, espiar as panelas e
saber de Michael o que havia para o almoço daquele dia. Depois ia para a sala e
chamava os convidados para a mesa. Algumas vezes, havia vinte pessoas.
K era de
fato uma pessoa muito tímida. Numa ocasião, quando um grande número de
visitantes chegou para o almoço, eu o ouvi perguntar timidamente: Quem
são todas estas pessoas? Aproximando-se sem ser visto, ele
modestamente saiu de trás de um biombo e chamou os convidados dizendo: Madame
est servie.
K sempre
entrava na sala pela porta da cozinha. Uma vez tentamos calcular quantas vezes
K havia passado por aquela porta. Deve ter sido cerca de milhares de vezes
enquanto Michael era “chef”.
Durante um
almoço K disse que pretendia fazer um documento sobre a Oak Grove School, que
seria distribuído durante as palestras públicas. Como a Fundação não tinha um
bom copista, parecia difícil imprimir o documento em tempo. Isso me levou a
fazer a primeira doação à American Foundation sob a forma de um fotocopista de
alta qualidade. O documento foi chamado A Intenção da Escola de Oak
Grove e, como o considerei muito pertinente, apresento-o aqui:
“A Intenção
da Escola de Oak Grove
Está se
tornando mais e mais importante num mundo destrutivo e degenerado que exista um
lugar, um oásis, onde a pessoa possa aprender um modo de viver íntegra, sadio e
inteligente. A educação no mundo moderno tem se preocupado não com o cultivo da
inteligência, mas do intelecto, da memória e de suas habilidades. Neste
processo pouco acontece além da passagem de informação do professor para o
aluno, do líder para o que segue, produzindo um modo de vida superficial e
mecânico. Nisso há pouca relação humana.
Seguramente
a escola é um lugar onde se aprende sobre a totalidade da vida. A excelência
acadêmica é absolutamente necessária, mas a escola tem que incluir muito mais
do que isso. É o lugar onde o professor e o aluno exploram não só o mundo
exterior, o mundo do conhecimento, mas também seu próprio pensar, seu próprio
comportamento. A partir daí eles começam a descobrir seu próprio
condicionamento e como ele distorce seu pensar. Este condicionamento é o ego ao
qual se dá tremenda e cruel importância. A liberdade do condicionamento e de
suas misérias começa com esta atenção. Apenas com tal liberdade o verdadeiro
aprendizado pode ocorrer. Nesta escola é responsabilidade do professor
sustentar com o aluno uma exploração cuidadosa nas implicações do
condicionamento e, assim, acabar com ele.
Uma
escola é o lugar onde a pessoa aprende a importância do conhecimento e suas
limitações. É um lugar onde se aprende a ver o mundo não de um ponto de vista
particular ou conclusão. Aprende-se a olhar a totalidade do esforço do homem,
sua busca da beleza, sua busca da verdade e de um modo de viver sem conflito. O
conflito é a própria essência da violência. A educação não tem se preocupado
com isso, mas nesta escola nossa intenção é entender a realidade e sua ação sem
qualquer ideal preconcebido, teorias ou crenças que produzem uma atitude
contraditória em relação à existência.
A escola
está interessada em liberdade e ordem. Liberdade não é a expressão do próprio
desejo, escolha ou interesse próprio. Isso leva inevitavelmente à desordem.
Liberdade de escolha não é liberdade, embora pareça ser; assim como ordem não é
conformismo ou imitação. A ordem só pode surgir com o “insight” que escolher é,
em si mesmo, a negação da liberdade. Na escola a pessoa aprende sobre o
movimento do pensamento, o amor e a morte, porque tudo isso é nossa vida.
Desde
tempos antigos o homem tem buscado algo além do mundo material, algo
imensurável, algo sagrado. É intenção desta escola investigar esta
possibilidade.
A totalidade
deste movimento de investigação no conhecimento, em si mesmo, na possibilidade
de alguma coisa além do conhecimento, provoca naturalmente uma revolução
psicológica e, a partir daí, surge inevitavelmente uma ordem completamente
diferente nas relações humanas, na sociedade. O entendimento inteligente de
tudo isso pode produzir uma mudança profunda na consciência da humanidade.”“.
No ano
seguinte fiquei em “Arya Vihara” por quase duas semanas. Nesta casa Annie
Besant e Aldous Huxley ficaram, e aqui Nitya, irmão de K, morreu. É uma casa
simples, bem cuidada, com uma atmosfera maravilhosa, rodeada por muitas flores
e árvores grandiosas. Hoje serve de biblioteca onde se pode ver vídeos, ouvir
fitas de áudio e pode-se ler ou comprar qualquer publicação sobre os
ensinamentos de K. Depois que comprei uma casa em Country Club Drive, em Ojai,
K veio me visitar. Foi no verão de 1985; ele não tinha mais a melhor saúde mas
era extremamente ativo. Logo que ele entrou na casa, Magda, minha esposa,
perguntou se ele poderia fazer algo a respeito do quarto dela que não tinha uma
atmosfera agradável, possivelmente devido ao estilo de vida de um de seus
ocupantes anteriores. Ele concordou e pediu que esperássemos do lado de fora
enquanto ele entrava no cômodo que lhe indicamos. Depois de um tempo ele
voltou, e perguntei se ele podia exorcizar outro aposento, o que ele fez. No
dia seguinte ele perguntou de forma modesta e amigável: Você percebeu
alguma diferença? – Oh, sim,respondi, está maravilhoso; uma paz;
uma tremenda calma. Mas pergunto se não é apenas minha imaginação. K
segurou meu braço com sua costumeira intensidade e disse: Eu também.
K costumava
chamar minha esposa de “Madame A.G”. Em Brockwood ele sugeriu que mudasse meu
nome para “A.G.” Perguntei o que significava e ele explicou: Ange
Gardien(Anjo da Guarda).
Na mesa de
almoço em Ojai, mostrei a K certa ocasião o programa de uma conferência sobre
psiquiatria que um psiquiatra amigo meu de Lausanne me enviara. K examinou-o
com muito cuidado, como fazia com tudo que lhe traziam. Depois comentou: Nada
além de palavras. Nada de fato fora de suas próprias vidas. Do mesmo
modo algumas vezes ele observava a respeito da filosofia moderna que quase
sempre significava “mais conversa a respeito de conversa”, e “mais palavras a
respeito de palavras” e “livros escritos a respeito de outros livros escritos
por outros”.
Com muitas
risadas K contava a história de seu encontro com um multimilionário. Quando
esteve em Washington, D.C, em 1985 dando palestras no Kennedy Hall, K foi
convidado para encontrar com um milionário na esperança de que ele doasse
dinheiro para a Fundação ou para a escola da Califórnia. Depois de sentar o
milionário declarou:Eu acredito em Jesus Cristo. K respondeu
perguntando: Por que você crê? E o envolveu numa discussão
sobre as razões mais profundas que levam as pessoas a buscar segurança numa
crença. K ria contando como o rosto do homem tornava-se duro como a parede por
trás dele. A esposa do milionário parecia mais aberta mas mesmo assim não houve
doação.
Em
Washington, a capital superpoderosa, K afirmou publicamente que: O
poder é ridículo sob qualquer forma. Em outra ocasião, na Índia, ele
observou que não gostava da atmosfera de Deli porque ela parecia ter esta mesma
função.
BROCKWOOD
PARK
No começo de
junho de 1984, K, Mary Zimbalist e eu fomos para Londres e daí para Brockwood
Park. A Fundação insistia que K viajasse de primeira classe devido a sua idade.
Neste vôo em particular não consegui um lugar na primeira classe assim, fiquei
na executiva. K ouviu isso e disse: Temos que fazer alguma coisa a
respeito. Não entendi o que ele queria dizer e esqueci o assunto.
Quando chegamos ao aeroporto, K e Mary foram na frente enquanto eu fazia o
“ckeck in”. Quando segui atrás deles, uma comissária correu atrás de mim e me
deu um bilhete da primeira classe, num assento bem atrás de K. Eu nem mesmo
tive que pagar a diferença.
Quando
voamos sobre o deserto da Califórnia havia um magnífico pôr de sol abaixo de
nós. As montanhas ardiam com todas as sombras e cores: do vermelho mais
profundo ao mais delicado rosado. Podíamos ver as linhas retas das estradas e
ferrovias cortando o deserto. Quando chegamos à Inglaterra, tudo estava verde.
K falou com entusiasmo: Veja isso, só veja! Que verde!
Em Brockwood
fiquei num pequeno aposento com sacada na Ala Oeste. Quando K mostrou-me o
quarto pela primeira vez, disse: Aqui você está em casa. A
sacada só podia ser alcançada subindo pela janela. Tendo me lavado da poeira de
gerações, e depois de desvencilhar-me do casaco e de vários cobertores, eu
costumava praticar meus exercícios de ioga ali, todas as manhãs. K achou isto
fascinante e deu uma boa olhada na sacada. Alguém tirou uma foto de meu pé
projetando-se pela balaustrada enquanto eu fazia um exercício de ponta cabeça.
K praticou
ioga a vida toda. Ele enfatizava que a ioga era boa para o corpo mas não tinha
nada a ver com iluminação espiritual. Inicialmente, ele disse, a ioga era bem
diferente de hoje, sendo então apenas para poucos. Algumas vezes, quando K me
mostrava algum exercício, eu ficava imaginando qual seria o estado de sua mente
enquanto o fazia. Parecia que toda sua personalidade estava ausente mas, ao
mesmo tempo, podia se sentir uma enorme presença. Mais tarde ocorreu-me que ele
devia estar no que descrevia como “meditação”, um estado que ele dizia não
poder ser produzido por nenhuma ação deliberada ou exercício. Quando fazíamos
nossos exercícios pela manhã, passávamos por vários exercícios de respiração,
olhos, pescoço e ombros e terminávamos saltando e correndo. K ainda fazia tudo
isso aos oitenta e nove anos. Depois ele escreveu os exercícios para que eu
pudesse fazê-los por conta própria. Só os exercícios respiratórios ocupavam
meia hora. Um dia ele disse: Agora você conseguirá caminhar mais.
Eu tinha o
hábito de praticar longas marchas. Durante o último verão com K em Rougemont,
eu levantava de manhã bem cedo, em parte para fugir do calor do dia. Quando eu
voltava para o almoço, K perguntava, Combien d’heures? (Quantas
horas?) Eu respondia três, quatro ou cinco horas; ele sempre ficava
impressionado e finalmente dizia:Ele quer ficar caminhando até o final de
seus dias.
Foi em
Brockwood, durante nossos exercícios de ioga que um dia K levantou as cortinas
das janelas do quarto mostrando uma vista magnífica dos campos e montanhas
distantes. Apontando para aquela beleza, ele me disse em latim: Benedictus
est qui venit in nomine domini. Ele me pediu que traduzisse a frase, e
eu o fiz assim: Bendito é aquele que vem em nome de Deus Quando
pronunciei a palavra “Deus”, ele descartou-a com um gesto. K muitas vezes
apontava que “Deus” era uma invenção da mente humana.
Toda manhã,
pontualmente às 7 horas, eu ia para o quarto dele para nossos exercícios de
ioga. Uma vez, quando entrei no quarto, ele estava ainda no escuro, e K estava
na cama. Ele levantou imediatamente quando abri a porta, e disse: Hoje
vou ficar na cama o dia inteiro. Respondi: Boa noite, e
ele riu. Ele tinha estado em Londres no dia anterior, e essa cidade
sempre o cansava. Uma vez depois de voltar de Londres, ele me encontrou na
escada, e nós dois ficamos imaginando por que se vai a tal lugar. Ele disse que
era um alívio sair de lá, que era exatamente o que eu achava.
Em Brockwood
K costumava lavar seus próprios pratos. Quando alguém se oferecia para fazê-lo,
ele respondia: É meu trabalho. Ele também insistia em limpar
seus próprios sapatos. Um dia o vi polindo o corrimão com grande
entusiasmo. Na Índia não me permitiriam fazer isso, disse. Na Índia
ele era obrigado a deixar que os empregados o servissem. Em Rishi Valley, ele
ficava primeiro num quarto muito pequeno, o que não o incomodava. Eu
simplesmente olho pela janela, brincava. Ele era uma pessoas modesta,
muito gentil em sua conduta pessoal e extremamente cortês. Em relação às
senhoras era mais atencioso, até cavalheiresco. Em algumas ocasiões ele podia
ficar impaciente com alguém, mas nunca quis ferir os sentimentos de ninguém ou
dizer diretamente o que alguém devia fazer. Ele apontaria as causas mais
profundas do problema em questão e estimularia a pessoa a descobrir por si
mesma qual a coisa certa a fazer. Podia-se aprender alguma coisa de cada palavra
que ele pronunciasse.
Em 1984
houve muitas dificuldades em Brockwood Park em relação à direção da escola. Um
grupo dentro da equipe estava em conflito com outro o que finalmente levou a
afastamentos da escola. K dedicou toda sua energia ao problema. Várias vezes
ele conversou com toda a equipe de professores. Uma vez ele até ameaçou fechar
a porta da Ala Oeste e não colocar os pés na escola novamente. Naturalmente ele
também conversou com os alunos e ficou chocado quando descobriu que professores
e outros membros da equipe estavam dedicando pouco tempo aos alunos pois
estavam preocupados com as divisões entre eles mesmos. Mais tarde, tendo falado
com os professores de modo invulgarmente severo, ele me disse: Nunca
falei assim antes. Nessa ocasião nos encontramos do lado de fora da
sala de reuniões logo depois desta reunião, e ele pegou minha mão enquanto
saíamos para um passeio curto. Em sua companhia a percepção da beleza natural
em torno de Brockwood Park era mais intensa. Em algumas ocasiões eu o acompanhava
em suas caminhadas à tarde. Em geral alguns amigos próximos iam com ele em tais
passeios, mas ele falava muito pouco nessas saídas. Ele tinha uma intensa
relação com as coisas da natureza. Afirmava que as raízes das árvorestêm um
som, mas não o ouvimos mais. Uma vez caminhando pelo campo em Brockwood atrás
do Bosque, eu ia passar entre um grupo de cinco altos pinheiros. Ele
me pegou pelo braço e disse: Não! Em volta deles! Não devemos
perturbá-los. Quando atravessávamos campos ele insistia que não se usassem
atalhos. Não abram caminhos!dizia.
Num desses
passeios que K costumava fazer durante o último ano em Brockwood, tinha-se que
transpor uma cerca no trajeto. Nesta ocasião eu já estava do outro lado,
esperando por K que tinha alguma dificuldade de subir na cerca. Um pouco
impaciente, pensei: Ele realmente precisa de mais tempo para transpor a
cerca. E como se tivesse ouvido meus pensamentos, ele respondeu: Espero
que, quando você tiver a minha idade, consiga subir na cerca tão bem quanto eu. Um
caso ocorrido na Índia mostrou sua íntima relação com as coisas vivas. Havia
uma plantação de mangas em Rajghat que não dava frutos. Assim, planejava-se
cortá-la. K contou como um dia, caminhando entre as árvores, falou: Ouçam,
se vocês não frutificarem, serão cortadas. Elas deram frutos no ano
seguinte.
K gostava de
trabalhar no jardim. Particularmente nos primeiros tempos em Ojai, ele fazia
muita jardinagem. Quando lhe mostrei meu jardim em Buchillon, que eu mesmo
planejei, ele falou: É bom sentir a terra entre os dedos. Quando
eu chegava em Brockwood vindo da Califórnia, me sentia cansado devido à
diferença de oito horas e à mudança de clima. Assim, algumas vezes, eu
costumava deitar sob uma árvore numa clareira no Bosque. O calor do sol me
aquecia agradavelmente. Falei com K sobre isso e ele respondeu: Oh, não
consigo dormir lá fora. Há muitas coisas para ver. E virou seus
grandes olhos de um lado para o outro do mesmo modo que fazia durante seus
exercícios. Sua visão era tão boa que ele nunca precisou de óculos para ler ou
outra coisa durante a vida. Nunca era enfadonho estar na companhia dele, e
embora fosse uma pessoa tremendamente séria, gostava de uma boa risada.
Partilhamos muito isso. Ele era um mestre na arte de contar histórias e tinha
uma alegria particular ao contar piadas. Duas das muitas piadas que ele às
vezes contava eram:
-
Três sábios estavam meditando no Himalaia em silêncio. Depois de passados dez
anos, o primeiro disse: Que bela manhã! Ficaram depois em
silêncio por mais dez anos, depois do que o segundo falou: Deve chover. E
eles ficaram em silêncio por mais dez anos. Finalmente o terceiro disse: Vocês
dois não vão parar de falar?
Ele se
interessava por todas as coisas, inclusive política mundial. Gostava de ver
programas políticos e de notícias na televisão e, mesmo em seu leito de morte,
perguntou: “O que está acontecendo no mundo?” Mas não gostava
de falar sobre guerra. Um dia K, Mary Zimbalist e eu estávamos indo de
Brockwood para Winchester. No caminho passamos por um imenso vale entre os
campos que, Mary falou, foi o lugar onde as tropas de Eisenhower se reuniram
para a invasão da Normandia. K impacientemente afastou a informação
dizendo: A guerra acabou muito tempo atrás. Ele estava bem
consciente do que tinha ocorrido durante a II Guerra Mundial e muitas vezes
mostrava que a crueldade daquela e de outras guerras continuava no presente.
Ele enfatizava que o nacionalismo é a causa comum de divisão e conflito no
mundo. Muitas vezes dizia sobre si mesmo: Eu não sou indiano.
Embora
algumas vezes ele mencionasse que havia sido criado por sua aristocracia,
ocasionalmente referia-se a “enfadonha sociedade inglesa”. Sobre Annie Besant,
que era inglesa e que ele amou como a uma mãe, disse que ela fez mais pela
Índia do que Mahatma Gandhi. Usando o exemplo de Gandhi, ele mostrou que forçar
os outros a fazerem o que se quer mesmo através de meios presumivelmente
pacíficos como o jejum, era ainda violento. Jejum por motivos políticos era violência.
Outro caso
que vem a mente relaciona-se com acontecimentos dos anos 30, muito antes de eu
conhecer K. Ele visitou Roma na ocasião e estava na praça São Pedro quando o
papa passou carregado numa liteira. K contava como o papa parou e lhe
perguntou: Você é indiano? Ao que K respondeu: Eu vim
da Índia. E o papa disse a ele: Gosto de seu rosto, depois
do que, entrou na liteira e seguiu seu caminho. Uma ocasião em Brockwood Park K
leu o “Velho Testamento”. Quando perguntei se gostava, ele respondeu: Gosto.
Não das histórias de fada que eles contam, mas da linguagem, do estilo. Ele
também gostava de histórias de detetive como passatempo e apreciava um enredo
bem construído.
Lembro
quando K e eu caminhávamos lado a lado um dia para a sala de jantar. Ele pegou
minha mão e disse com a intensidade que muitas vezes exibia: Não sei
por que gosto tanto de você. Isto nunca me aconteceu antes. Não tem nada a ver
com dinheiro. Je m’en fiche (sobre o dinheiro) Não ligo mesmo. Nesta
ocasião eu comecei a fazer doações para a Fundação, a escola e o departamento
de vídeo. Numa ocasião ele me disse:Somos irmãos. Vários anos
depois perguntei a Sunanda Patwardhan, antiga amiga de K e curadora da Indian
Foundation, o que ele teria querido dizer; ela respondeu que K simplesmente
apaixonava-se pelas pessoas.
K
disse: Estou apaixonada, não por você, mas pelo que existe oculto em
você; não por seu rosto ou suas roupas, mas pelo que é vida. (Acampamento
de Ommen, 4 de agosto de 1928).
SAANEN,
SCHÖNRIED E ROUGEMONT
Durante as
palestras de Saanen em 1984, K não pôde ficar no Chalet Tannegg pois a casa
estava sendo vendida. Assim, foi alugado um apartamento para ele perto de
Schönried. Durante uma visita lá, ele nos mostrou uma quantidade de quadros de
antigos navios que havia em seu quarto, num dos quais ele um dia cruzou o
oceano. Outra vez, meu velho amigo de escola, Edgar Haemmerle, da Áustria, e eu
fomos convidados para almoçar no apartamento de K. Edgar vivera como uma
espécie de ermitão sociável numa cabana de madeira sem eletricidade, telefone
ou água corrente, cuidando de vários animais, inclusive uma coruja. Quando K
encontrou Edgar pela primeira vez imediatamente lhe perguntou se ele era um tipo
de fazendeiro, e eles entabularam uma animada conversa sobre animais e coisas
assim. Era sabido que K tinha uma relação especial com os animais. Um dia fomos
almoçar no “Klösterli”, perto de Gsteig, onde servem especialmente boas saladas
com a produção orgânica da horta própria. O proprietário do restaurante gosta
muito de cachorros. Enquanto estávamos na mesa, seu cachorro veio e deitou-se
sob a cadeira de K. O dono ficou surpreso e disse que nunca tinha visto o
cachorro deitar sob a cadeira de nenhum convidado.
K gostava de
falar sobre sua experiência com animais mas, mais do que qualquer outra,
adorava contar a história do tigre. Na Índia alguns amigos levaram-no de carro
para ver um tigre na selva. Finalmente um tigre apareceu e aproximou-se da
janela do carro. K moveu-se para afagar o animal mas seus assustados
companheiros rapidamente puxaram seu braço. K estava convencido de que nada de
prejudicial lhe aconteceria. Ele simplesmente estava sem medo. Uma vez, na
Valley School em Bangalore, foi dito a K que um bando de elefantes atravessara
as terras da escola. K ficou fascinado com o relato e adoraria tê-los visto.
Outra
história, que aconteceu em Rajghat, diz respeito a um macaco. Um dia, enquanto
K fazia seus exercícios de ioga no quarto, um grande macaco selvagem pulou no
peitoril da janela, esticando a pata em direção a K. K pegou-a, e assim eles
ficaram por um tempo, K e o macaco, de mãos dadas.
Uma vez,
durante o almoço em Ojai, K contou a história de como na volta de um longo
passeio, ouviu um cachorro latindo. Ele disse que podia-se saber pelo latido se
um cão era perigoso. Este evidentemente era. Como não havia outro caminho de
volta, ele tinha que passar pela casa onde o cachorro estava latindo. Quando
ele se aproximou, o cachorro correu para ele e começou a rodea-lo. De repente
ele agarrou o braço de K que começou a adverti-lo: Vá para casa! E
isso afinal foi o que aconteceu, o cachorro largou-o e foi para casa. K, no
entanto, não recomendava este tipo de comportamento por imitação. Ele explicava
como lidar com um cachorro mau de acordo com o que lhe dissera uma vez um
oficial do exército francês: segure uma vara horizontalmente para o cachorro
fincar os dentes nela, então você o chuta na barriga. Mas K parecia não
precisar deste tipo de defesa.
Meu amigo
Edgar gostava muito de beber um pouco de vinho. Quando ele não viu nenhum em
minha casa, ficou muito desapontado, e naturalmente não esperava que houvesse
algum em Schönried quando foi lá para almoçar. Assim, ficou agradavelmente
surpreso ao encontrar uma esplêndida garrafa de vinho tinto sobre a mesa. K lhe
disse imediatamente: Você pode beber a garrafa toda. K, na
verdade, não tinha nenhum. Edgar e eu estudamos na mesma escola em Davos. Então
K perguntou a ele se eu tinha ido para a escola principalmente para estudar ou
para esquiar. Edgar respondeu: Para esquiar, suponho.K fez uma
expressão como se esperasse isso mesmo.
Na Segunda
vez em que almoçamos juntos, Edgar tinha planejado voltar para casa no trem de
Schönried. Estávamos numa conversa animada quando perguntei a Edgar, com alguma
apreensão, quando seu trem partiria. Verificou-se que havia apenas cinco
minutos para chegar até a estação. Todos se levantaram. Eu disse para Edgar: Temos
que correr. Não, não, interferiu Mary, “Vou levá-lo à estação
em meu carro”. Ela subiu para pegar as chaves do carro. K levantou os
braços e gritou: Você tem que correr! Você tem que correr! Mary
subiu mais depressa, enquanto Edgar e eu corríamos escada abaixo, para fora da
casa e em direção à estação. O trem estava quase saindo quando chegamos,
ofegando pesadamente. Na próxima vez que encontrei K, ele disse: Vi
como você correu.
Mesmo em
relação a coisas pequenas, K era muito observador. Uma vez em Ojai quando me
vesti para almoçar com K, não consegui achar um cinto para minhas calças e fui
sem cinto. Havia vários outros convidados lá, mas quando voltei dois dias
depois ele perguntou-me casualmente: Encontrou seu cinto?
Nada parecia
escapar de sua observação. Numa ocasião fiquei sofrendo com dores no tórax por
um tempo. Embora a dor fosse considerável, não dei muita atenção, nem procurei
um médico. Depois de uma refeição, K deu leves pancadinhas em meu tórax com os
dedos, uma ou duas vezes. Logo depois disso a dor desapareceu. Só então percebi
que ele fora suscetível a minha dor. Mais tarde, ouvi histórias semelhantes de
outras pessoas.
Outra vez eu
estava tendo dificuldades para entender o extrato de banco de uma conta que eu
havia aberto recentemente em Ojai. Pedi a Mary, que era dos Estados Unidos, que
me explicasse. Enquanto ela explicava, K aproximou-se e caminhou a nossa volta,
dizendo repetidamente para Mary: Maria, fique muito atenta!
Ele continuou repetindo até Mary responder: Mas eu estou atenta. Depois
de um tempo, me pareceu que não havia nada mais importante do que aqueles
aborrecidos extratos bancários.
Freqüentemente
K falava sobre “atenção total”, mas apontava que isso não podia ser confundido
com hipnose. Algumas vezes, depois de uma palestra as pessoas pareciam estar
hipnotizadas. Nestas ocasiões ele dizia para o público: Senhoras e
senhores: Não fiquem hipnotizados! Por favor, levantem! Ele falava sem
“pathos”, mas muito intensamente. Durante as palestras de 1985, K ficou em
Rougemont. Coloquei meu apartamento alugado no Chalet I’O Perrevoué à disposição
dele e a Fundação alugou um grande apartamento adicional no mesmo Chalet para
acomodar a equipe, cozinha, médico e possíveis convidados como Vanda
Scaravelli. No ano anterior nós havíamos convidado K para almoçar lá, e ele
apreciou grandemente a mesa de jantar e sua pesada borda de madeira. Ele em
geral estava ciente e apreciava a qualidade em todas as coisas. Depois de um
tempo, K mudou-se do apartamento menor e mais em baixo para o maior no andar
superior. Era mais espaçoso, e tinha uma sacada. Ele também ficou feliz pois
fazendo isso, Mary Zimbalist não tinha mais que dividir o banheiro. Ele disse
cavalheirescamente: Você sabe, ela é uma senhora.
Um dia um
artista americano, Richard Gere, veio almoçar. E embora já tivesse proferido
uma palestra nesse dia, K conversou intensamente com ele. Quando estava para ir
embora, Richard Gere, que parecia visivelmente comovido, perguntou a K: Posso
lhe dar um abraço? Foi muito tocante ver aquele gigante inclinar-se e
abraçar K de modo que a figura esbelta de K desaparecesse nos braços do outro.
Em outra ocasião, depois de uma palestra particularmente comovente em Saanen,
fui ver K em seu apartamento. Ele estava estendido na cama pois seu médico
havia dito que ele descansasse depois de cada palestra. Eu disse a ele que
tinha sido maravilhoso. Ele ficou muito sério, e uma grande dignidade emanou
dele quando ele concordou simplesmente: Foi maravilhoso.
Uma senhora
da Itália que veio para o almoço uma vez contou que, numa conferência de
curadores e clarividentes, foi dito que curas espirituais e clarividência não
funcionavam quando os pensamentos interferiam. K comentou muito
simplesmente: É isso que temos dito durante setenta anos.
Foi também
em Rougemont que Pupul Jayakar disse a ele que era muito difícil entendê-lo.
Ele resolutamente afirmou: Devo tornar-me mais simples. E de
fato, nos dias seguintes ele expressou-se ainda mais simples e claramente.
Também em Rougemont K recontou várias histórias sobre mulheres que continuavam
seguindo-o. Em Madras uma senhora invadiu seu banheiro entrado pela janela, e
ele teve que pedir ajuda. Outra mulher implorou que ele deixasse ela beijar
seus pés. Quando finalmente ele acedeu, ela agarrou seus tornozelos e não
queria largá-los. Ele tinha um maravilhoso dom para contar casos de modo
engraçado. Podia rir até ficar com lágrimas nos olhos. No final de uma história
ele disse: Somos todos malucos; mas eles nos superam.
K assistiu
aos Jogos Olímpicos de 1984 pela TV em seu apartamento em
Schönried. Quando algumas corridas eram mostradas, ele gritava: Maria,
veja como eles correm! Veja como eles correm!
K gostava de
falar francês. Uma vez na hora do almoço estava nos falando sobre Paris onde
havia passado algum tempo, particularmente durante os anos 20. Conheceu nessa
época um marajá que colecionava carros e comprava qualquer modelo que não
possuísse. Numa ocasião K acompanhou-o na compra de um novo carro. O vendedor
simplesmente recusou-se a acreditar que K não era o verdadeiro marajá. Quando
eu disse que atualmente Paris não era mais o que fora, K respondeu
apenas: Vous savez… (Você sabe…)
Enquanto
dávamos um passeio em Rougemont, K comentou com alguma admiração a forma
ordenada como os suíços empilhavam a madeira para o fogo. Ele especulou sobre
como os americanos considerariam este tipo de atividade: Ah, não temos
tempo para isso; a vida é muito curta.
Uma vez,
depois que voltei de uma ida a Buchillon, K perguntou-me: Como
foi? Quando comecei a responder: O lago estava -, ele
completou a frase mais depressa do que eu podia pensar, – como um
espelho .
Uma vez ouvi
K perguntar: Quando dois egoístas se casam, o que se tem? Depois
de um silêncio breve e cheio de expectativa dos presentes, ele respondeu à
própria pergunta:Apenas dois egoístas.
Perguntei-lhe
uma vez se ele preparava suas palestras. Ele respondeu: Não, pois não
saberia o que dizer.
RISHI VALLEY, RAJGHAT E MADRAS
Quando em
Madras, K costumava caminhar ao longo da praia toda tarde perto do pôr do sol.
Para alcançar a praia a pessoa tinha que passar pelos extensos jardins da sede
da Sociedade Teosófica em Adyar. Os guardas do portão reconheciam K,
saudavam-no e ele respondia com um cumprimento amistoso. Na extremidade leste
dos jardins, perto da casa de Radha Burnier, uma porta no muro levava à praia.
K conhecia Radha desde a infância dela, assim como seu pai, Sri Ram, que até a
morte foi presidente da Sociedade Teosófica. Radha sucedeu-o. K gostava muito
dela e a convidava para conversas quando ela estava próxima. A praia onde ele
costumava caminhar é chamada Praia de Adyar porque ali o rio Adyar entra na
Baía de Bengala. Uma pequena ponte sobre o rio foi destruída por uma
tempestade, e agora restava apenas uma parte dela. K costuma ir direto para o
lado quebrado. Parecia um tanto perigoso, particularmente porque havia muitas
vezes um vento forte, e podia-se facilmente imaginar que uma pessoa com a
estrutura delicada de K podia ser impelida para fora da ponte. Na Índia ele
usava sempre roupas indianas, e ali elas flutuavam como velas ao vento. Eu
ficava perto dele de modo que pudesse segurá-lo se ele caísse. No entanto, de
fato, o perigo de ser atirado da ponte deve ter sido maior para mim do que para
K cujas pernas permaneceram notavelmente vigorosas até o fim de sua vida.
Na
desembocadura do rio víamos muitas vezes pessoas que tentavam pegar peixes com
um tipo de rede feita de galhos. Uma vez estávamos observando-os enquanto
jogavam a rede. Era uma atividade bastante complicada e o resultado de seus
prolongados esforços foi um único e serpenteante peixe. K, que observava este
procedimento bem de perto, ficou horrorizado com as condições de vida daquelas
pessoas.
Ele nos
disse que em Bombaim tinha visto prédios modernos nos quais o preço de um
apartamento era cerca de um milhão de dólares, enquanto bem em frente ao prédio
uma família inteira vivia na sujeira da rua. K estava profundamente consciente
da pobreza das pessoas na Índia e profundamente tocado pela miséria causada por
ela. Muitas vezes ele deplorava o dinheiro gasto nos casamentos indianos e
considerava tal despesa inútil e irresponsável.
Indianos em
geral não caminhavam por gosto, mas quando K saia para suas caminhadas à tarde,
uma tropa de seguidores se juntava a ele. Quando crianças o acompanhavam, ele
as segurava pela mão durante um tempo. Freqüentemente uma porção de pessoas
ficava esperando ao longo da praia. Quando elas o saudavam, ele respondia de
modo amistoso.
Durante um
passeio à tarde, um homem gordo caminhava perto de K tirando muitas fotos dele.
Embora eu tentasse gentilmente afastá-lo, ele não parecia notar meus esforços.
Mas quando vi que parecia não se importar, desisti de minhas manobras. O homem
orgulhosamente me anunciou que havia tirado cerca de 200 fotos de K.
Em 1984
havia planos para K fazer um debate público com o Dalai Lama em Deli. Durante uma
conversa, K conjeturou sobre o que falar com o Dalai Lama e finalmente
afirmou: Bem, de qualquer modo eu direi a ele que é tudo tolice. Mas
Indira Gandhi, então primeira ministra indiana, foi assassinada no dia anterior
ao debate e, infelizmente, a coisa toda foi cancelada devido à subseqüente
agitação na capital indiana.
Um dia em
Deli a filha de Radhika Herzberger e uma amiga estavam almoçando conosco na
casa de Pupulji. K perguntou-lhes em que assuntos estavam interessadas. Elas
responderam: Física e matemática. Depois de uma pausa K
comentou: Um tanto assustador – jovens interessadas em física e
matemática! K estava sempre preocupado com as conseqüências da
crescente especialização no mundo.
Uma vez em
Rishi Valley, quando K deixou o salão depois de ter assistido a uma
apresentação de dança, ele achou que suas sandálias tinham desaparecido. Outro
par de sapatos tinha que ser encontrado para que ele pudesse voltar para casa.
Mais tarde ele comentou: Agora alguém tem um belo par de sandálias.
Mas ele também ficou imaginando se o ladrão ia simplesmente usá-las, ou ia
transformá-las em objeto de adoração.
Durante
nossa estadia em Rishi Valley em 1985, algumas vezes nós fazíamos nossos
passeios na direção oeste. Ao longo deste caminho pode-se ver um templo que é
consagrada a uma das muitas deusas hindus. Em várias ocasiões K exorcizava este
templo andando em volta dele. Um dia nós entramos. Quando eu estava a ponto de
entrar num aposento que estava separado por uma tela de gelosia e por trás da
qual podia se ver uma pomposa estátua da deusa, ele me reteve e disse: Não;
eles não querem que entremos!
Sobre Rishi
Konda, a Montanha dos Sábios, que domina o vale, ele costumava dizer: Esta é
a Esfinge de Rishi Valley.
Em dezembro
de 1984, depois de um debate com os alunos de Rishi Valley, K ficou
impressionado pelo vivo interesse e abertura daqueles jovens. Com grande
compaixão ele nos perguntou: Você reparou nestas crianças? Elas serão
jogadas aos lobos!
Uma vez
perguntei a K: Senhor, o que há de diferente na Índia? Ao que
ele respondeu:Há mais medo aqui.
K uma vez me
contou o caso de um professor em Rajghat que lhe perguntou: Senhor,
posso lhe dizer algo? Quando você vem aqui, é como uma tempestade. Por isso
ficamos todos felizes quando você vai embora.
Quando perguntei
a K o que eles mais queriam em Rishi Valley, ele respondeu: Um centro
para adultos.
UM RELATO
DA ÚLTIMA VIAGEM À ÍNDIA COM K
Em novembro
de 1985 em Rajghat, K me disse que ainda tinha alguns meses de vida. Quando
lembrei-lhe que ele havia nos prometido viver mais outros dez anos, ele apenas
levantou os braços. A saúde de K já havia começado a se deteriorar em
Brockwood. Os costumeiros passeios que ele costumava dar tornaram-se mais
curtos. A caminhada pelo Bosque e pelo campo, que em certo momento incluía
transpor uma cerca, ele não fazia mais. Fora isso, estava tão ativo como
sempre. Uma vez ele me disse: Je travaille comme un fou! (Estou
trabalhando como o diabo!)
K gostava
quando alguém ligado a ele o acompanhava à Índia. Ele me convidou para ficar
perto de onde ele morava e comer a mesma comida. Você fica
conosco! ele disse quando fui a primeira vez para Rishi Valley e
Madras em 1984.
Em 1985/86
fui com ele em sua última viagem à Índia. Voamos de Londres para Deli via
Frankfurt. Porque o avião de Londres estava atrasado, no aeroporto de Frankfurt
fomos levados de um terminal para outro num carro elétrico, o que foi uma
grande sensação para K.
Ele também
ficou assombrado com as grandes distâncias dentro do aeroporto. No avião ele
disse: Estou feliz por estarmos nós dois sozinhos. Era noite
quando sobrevoamos a Rússia e o Afeganistão. Depois de chegar em Deli, K foi
hospedar-se na casa de Pupul Jayakar e eu fui para um hotel.
Todo dia no
pôr do sol nos encontrávamos no Lodi Park. Na entrada do parque havia uma
cruzeta giratória que brilhava com a sujeira das muitas mãos que a tocaram. Eu
a abria com o pé, e toda vez K exclamava: Bom! Ele era muito
preocupado com a limpeza. O parque era bem cuidado, com muitas árvores,
gramados, canais e pontes, e antigos prédios da época mongol. Com o anoitecer,
inumeráveis pássaros reuniam-se e ajeitavam-se para passar a noite. O barulho
que faziam era ensurdecedor. De vez em quando Nandini ou a filha de Radhika,
Maya, se juntavam a nós, e algumas vezes Pamaji nos acompanhava.
Viajar e as
freqüentes mudanças de clima cansavam K, e sua saúde deteriorou em Deli. Ele
não dormia bem e comia muito pouco.
Ocasionalmente
outros andarilhos o reconheciam. Um homem abordou-o um tanto agressivamente
perguntando: Você é Krishnamurti? Você devia ficar na Índia. Aqui estão
suas raízes. K respondeu: Não sou ninguém! Levantou
as mãos e me disse: Veja! Eles têm uma idéia fixa e agarram-se a ela. Apesar
dessa experiência, K ficava amistosamente frente a todos que encontrava e, especialmente
aos desprivilegiados e àqueles que normalmente eram ignorados, como o vendedor
de sorvete na entrada do Lodi Park.
No avião
para Varanasi K manteve a cortina abaixada devido ao sol brilhante. Ele sofreu
uma vez com uma insolação e tinha que ter cuidado com a luz direta do sol. Mas
de vez em quando levantava a cortina para ver os picos brancos da Himalaia. Ele
falou: As montanhas são realmente algo!
Ele me
contou que uma vez, ainda jovem, estava escalando a Zugspitze com com sapatos
comuns. Um guia que passava com um grupo de alpinistas numa corda reparou nele.
Depois de repreendê-lo, amarrou-o no final da corda e levou-o montanha abaixo.
K, no entanto, não ficou com medo, e disse que podia ter descido em segurança
por conta própria.
Fiquei dominado
pela atmosfera de Rajghat em Varanasi. Ali se podia sentir o encantamento que
parece existir em todos os lugares em que K viveu – existe também em Brockwood,
Rishi Valley e Ojai. Pode-se encontrá-la até no Chalet Tannegg em Gstaad, em
Vasanta Vihar em Madras, e na casa de Pupul em Deli. Os arredores são de grande
beleza e mantidos imaculadamente: ilhas de serenidade no meio do tumulto do
mundo, cheias de árvores, flores, pássaros e borboletas; e que possuem uma
certa santidade.
Caminhando
pela área da escola, chega-se a vários sítios de escavação arqueológica. A
propriedade da escola fica em uma das mais antigas partes de Varanasi, chamada
“Kashi”, e presume-se que havia ali templos, parques e palácios de 4000 ou 5000
anos. Além dos sítios arqueológicos, um canal leva o esgoto da cidade para o
Ganges. O mau cheiro é notado em todo o caminho até a casa de K. Ele riu quando
Pupulji assegurou que um novo sistema de esgoto seria construído num futuro
próximo. Obviamente esta promessa foi feita inúmera vezes ao longo dos anos.
Quando visitei Rajghat no ano seguinte, nada havia sido feito ainda. Só em
minha visita no final de 1988 percebi o início da construção de um imenso novo
sistema.
Na escola de
Rajghat meu quarto ficava abaixo do quarto de K. Logo que chegou, K deu início
a intensas conversas com Radhika e vários outros colaboradores indianos. À
tarde ele dava várias voltas em torno do “playground” da escola acompanhado por
seus amigos que ele chamava brincando de guarda-costas. Mesmo durante estes
passeios recreativos ele continuava suas discussões com eles.
Era costume
convidar para o almoço pessoas com as quais K mantinha animadas conversas. Em
Ojai e Saanen algumas vezes ele ficava conversando até quatro horas da tarde,
mesmo que tivesse feito palestra pela manhã. Ele gostava de perguntar aos
convidados sobre suas respectivas áreas de atuação. Assim estava bem informado
sobre os avanços em política, educação, medicina, ciência, computador, etc. Uma
vez o vice-reitor de uma universidade e a esposa foram convidados para o almoço
em Rajghat. K notou com tristeza que o homem não olhou nem sorriu para a esposa
uma vez sequer.
De vez em
quando a nora do dr.Pachure trazia sua adorável filha de três anos. K dizia
para a garotinha: Não esqueça que eu quero ser seu primeiro namorado!
Durante o
período que ficamos em Rajghat, muitos festivais religiosos ocorreram e eram em
geral muito barulhentos. O templo vizinho ressoava com fogos, tambores e
cantorias até tarde da noite. Na manhã seguinte começava tudo de novo. Havia
também ao lado uma mesquita e podíamos ouvir grandemente amplificada a canção
monótona do muezim durante nossos passeios. Nada disso parecia perturbar K. Se
o muezim não tivesse ainda começado sua convocação e percebesse a aproximação
de K, vinha até a cerca para apertar-lhe a mão afetuosamente.
Nesta
ocasião, parte do filme indiano The Seer Who Walks Alone (O profeta que
caminha sozinho), um documentário sobre K,estava sendo feita em
Rajghat. Nela, K atravessa a ponte estreita sobre o rio e passa pelo caminho
que o Buda usava quando ia a Sarnath depois de ser iluminado. K disse ao
produtor do filme: Farei tudo que você quiser que eu faça. Numa
ocasião, estando numa colina acima do rio Varuna, K foi filmado contra o sol
poente como uma antiga escultura.
Quando se
aproximava a hora de suas palestras públicas, K parecia ganhar nova energia.
Ele proferiu três palestras e manteve um encontro de Perguntas e Respostas em
Rajghat, apesar dos sinais óbvios de fraqueza física. Também fez três diálogos
com Panditji, na presença de trinta ou quarenta ouvintes, no andar superior de
sua casa, que estão registrados no livro The Future Is Now .
Durante estas palestras um participante destacou-se pela maneira simples e
clara com que se comunicava com K. Na ocasião eu não sabia que esta pessoa era
o novo diretor da escola, Dr. Krishna. K estava interessado em cada aspecto do
encontro. Convidou o Dr. Krishna e sua família para o almoço e conversou
afetuosamente com sua esposa e filhos. Um dia o avô veio também. Como sempre K
preocupou-se também com detalhes práticos, como o salário adequado para o novo
diretor, e que ele tivesse um carro que levasse sua filha para a universidade.
K ficou entusiasmado com o doutor Krishna que, como médico conhecido,
trabalhara anteriormente nos EUA e Europa. K me contou que quando lhe perguntou
se ele assumiria a escola, depois de deliberar algum tempo, ele
respondeu: Eu ficaria muito satisfeito.
Apesar do
estado precário de sua saúde, K dedicou todo seu tempo e energia a este
assunto. Foi muito bom que o doutor Krishna pudesse assumir a direção da escola
já que havia bastante dificuldades lá.
Finalmente
ficou resolvido que K faria as refeições na cama, já que ele dificilmente tinha
chance de comer alguma coisa durante estas conversas na hora do almoço. De
fato, ele tinha muito pouco apetite.
Depois de um
passeio K perguntou a Upasani, que pretendia aposentar-se como Diretor
Comercial da escola de Rajghat, se ele continuaria trabalhando para a Fundação.
Upasani concordou em continuar enquanto K estivesse lá. Eu disse a K: Upasani
devia continuar mesmo quando você não estiver. K imediatamente pediu a
Upasani: Senhor, fique um ano ou mais. Upasani ficou tão
emocionado que chorou; e, de fato, em 1987, depois da morte de K, ele tornou-se
secretário da fundação na Índia. Estava escurecendo e, de repente, K perguntou: Onde
está ele? pois não conseguia distinguir Upasani no escuro. Isto
marcou o início de uma espécie de cegueira noturna.
Em Rajghat K
várias vezes abordou o assunto do sexo. Ele apontou que se não fosse o sexo,
não existiríamos, que era simplesmente uma parte da vida. Alguém falou com K
sobre uma cerimônia de casamento em que os convidados já haviam chegado quando
descobriram que o noivo havia desaparecido sem explicação. K muitas vezes referia-se
a esse evento, conjeturando sobre a aparente determinação da noiva de casar
apesar das grandes dificuldades inerentes a tais circunstâncias. A certa altura
ele disse em voz alta:Eles fizeram sexo? A inocência desta
observação causou risos consideráveis entre os presentes.
Quando ele
foi convidado para as comemorações do Jubileu da Sociedade Teosófica em
Varanasi, perguntou a toda a assembléia se o sexo era necessariamente mal. Um
homem, que parecia um tanto fanático, respondeu com um categórico Sim!
Esta não era uma palestra pública e, assim, K não prosseguiu com o assunto.
Quando K
esteve com vários teosofistas no quarto de Annie Besant, perguntou a eles:Sobre
o que vamos falar? E continuou: Oh, sim, vou contar
algumas anedotas a vocês.O serviço da café de Annie Besant ainda estava no
quarto mas K não tinha nenhuma lembrança dele nem do próprio quarto. O serviço
de café devia estar ali a cerca de sessenta anos.
Durante os
passeios ele começou a dizer que suas pernas estavam muito fracas. Uma vez, depois
de caminhar em torno do campo de esportes da escola, ele caiu na escada. Seus
acompanhantes quiseram ajudá-lo mas ele recusou dizendo: Se eu cair na
escada é problema meu!
Depois das
palestras voamos para Madras via Deli. Quando chegamos o tempo estava
agradavelmente quente. As palmeiras e arbustos floridos balançavam suavemente
com a brisa fresca. Enquanto íamos do aeroporto para Vasanta Vihar, senti de
repente como se estivesse voltando para casa. Neste exato momento K
disse: É como voltar para casa!
Mais tarde,
quando caminhávamos pela praia, vimos e ouvimos as ondas quebrando
violentamente na luminosa areia amarela. Havia um forte vento soprando e nuvens
lilases delicadas estavam no céu. Contra este cenário, a lua cheia surgiu do
oceano ao mesmo tempo em que o sol se punha espetacularmente do outro lado.
Tudo isso se refletiu para nós na superfície do rio Adyar.
Ficamos
apenas poucos dias em Madras. Tendo saído de manhã cedo para Rishi Valley,
desta vez vimos o sol nascer enquanto a lua se punha simultaneamente a oeste.
Estávamos
viajando num carro novo que era decididamente mais confortável que o antigo
americano que usávamos antes. Como sempre, o carro ficou disponível através de
um bom amigo, o senhor Santhanam. Não paramos até termos coberto metade da
distância e as primeiras montanhas aparecerem. O cenário matinal era
imensamente pacífico. Um motociclista que havia parado na estrada ficou
surpreso por ver K ali. K não ficou menos surpreso ao ver alguém que o
reconhecia naquele lugar isolado. K conversou com nosso motorista sobre sua
família e insistiu que ele mandasse os filhos para Rishi Valley School.
Atualmente seu filho freqüenta a escola.
Radhika
morava no mesmo andar de K em Rishi Valley. Ela e eu tomávamos o café da manhã
na sala de jantar de K. Algumas vazes, quando K estava se sentindo mais forte,
eu ia vê-lo em seu quarto para desejar um bom dia. Porque ele estava se
sentindo tão fraco, seus passeios diários eram cancelados mas ele tinha ainda
muitas reuniões com alunos e professores.
Depois que
os professores de Brockwood, Ojai e das outras escolas indianas chegaram para a
Conferência Internacional de Professores em Rishi Valley, confirmou-se que K
era capaz de participar de algumas reuniões. Sua participação ativa não havia
sido planejada mas elevava o nível das discussões. Estas palestras também estão
no livro The Future Is Now.
Em uma
ocasião estávamos falando com ele sobre a criação de um Centro em Rishi Valley.
De repente um pássaro chegou na janela e começou a bater com força na vidraça,
obviamente querendo entrar. Era uma poupa e parecia agitada com os vários
estranhos na sala. K acalmou-a dizendo: Tudo bem, tudo bem, estou aqui,
estou aqui! Radhika me disse que K falava com o pássaro algumas
vezes. Uma vez quando ela entrou no quarto dele, achou que K estava com uma
visita. Ele estava falando com a ave: Você pode trazer seus filhos, mas
eles provavelmente não vão gostar daqui pois quando eu partir as janelas serão
fechadas e vocês não acharão a saída.
Depois que K
voltou a Madras, fui com alguns professores de Brockwood e Ojai visitar a
escola em Bangalore. O estado de saúde de K tornava difícil para eu imaginar
como ele faria uma série de palestras públicas para milhares de pessoas em
Bombaim. Assim, senti grande alívio quando elas foram canceladas. Fiquei em
Madras mais outra semana e acompanhei-o em alguns de seus passeios pela praia.
K agora decidira que queria ir para Ojai para ter mais tranqüilidade. Também
seria mais fácil ter tratamento médico estando em Pine Cottage. Assim K voou
para a Califórnia via Singapura. Scott Forbes, que já havia viajado com ele de
Rishi Valley para Madras, acompanhou-o nesta jornada através do Pacífico.
Depois de
voltar à Europa, passei três semanas nas montanhas suíças e voei de lá direto
para Ojai.
Agora K
estava muito doente e pedira que alguns curadores fossem chamados para estar
com ele e discutirem assuntos urgentes sobre a Fundação.
Quando K já
estava em seu leito de morte, um aluno da Oak Grove School escreveu-lhe
uma carta. K pediu que lessem a carta para ele e expressou então seus
agradecimentos ao estudante. Apesar de estar sentindo muita dor e estar muito
fraco fisicamente, ele não esqueceu o assunto e mais tarde perguntou-me se os
seus agradecimentos tinham chegado ao remetente da carta. Mesmo nesta condição,
sua única preocupação eram os outros.
Até o
momento final, sua mente estava clara. Eu o vi pela última vez três dias antes
de sua morte. Ele me disse: Je suis en train de partir, vous comprenez?
(Estou a ponto de partir, você entende?) Estas foram suas últimas
palavras para mim.
Na noite da
morte de K, senti uma envolvente onda de paz fluindo suavemente pelo vale com a
brilhante luz da lua. Uma vez em Brockwood Park ele me disse quando voltávamos
de uma caminhada: Este lugar deve sempre permanecer como está; e
quando lhe foi perguntado o que devíamos fazer depois de sua morte, ele
respondeu: Cuidem da terra e mantenham puros os ensinamentos.
PÓS-ESCRITO
Durante sua
vida Krishnaji freqüentemente perguntava àqueles a sua volta: O que
você vai fazer quando K se for? As vezes ele mostrava que grupos
formados em torno de um líder tendiam a romper-se dentro de quarenta anos da
morte do fundador. Amigos me perguntavam o que aconteceu nos anos após 1986,
quando K morreu.
Krishnaji
sempre enfatizou os perigos e falhas das organizações que seguiam um líder em
particular e que tinham uma hierarquia ou ordem. Existem cinco Fundações e
cerca de trinta comitês em vários países por todo o mundo engajados em
preservar e fazer conhecer a beleza e a necessidade dos ensinamentos de
Krishnamurti. Eu estou em contato tanto quanto possível com as pessoas
envolvidas nestes grupos e os visito várias vezes durante o ano.
As Fundações
mantém escolas, centros de estudo e arquivos. Produzem boletins, livros, áudio
e videoteipes, e organizam sua tradução em várias línguas. Os Comitês ajudam as
Fundações em seu trabalho colaborando na tradução e distribuição de publicações
em vários meios.
Krishnaji
pretendia que todas as Fundações e Escolas fossem como uma só, que trabalhassem
juntas nesse espírito. Era uma de suas mais profundas preocupações transmitir
isso àqueles que trabalharam com ele durante sua longa vida. Cinco anos depois
de sua morte, estamos trabalhando juntos em todo o mundo para prosseguir com o
trabalho que ele começou.
EPÍLOGO DA TERCEIRA
EDIÇÃO 1996
Passaram-se
dez anos da morte de Krishnamurti. O centésimo aniversário de seu nascimento
foi celebrado pelas Fundações, e isto foi visto como uma oportunidade para dar
ao seu trabalho uma plataforma pública maior. Em Vasanta Vihar, sede da
Fundação indiana em Madras, houve um enorme encontro, com vários milhares de
participantes. O Dalai Lama inaugurou as celebrações do Ano do Centenário. A
senhora Pupul Jayakar e o antigo presidente da Índia, Senhor R. Venkataram,
falaram na ocasião.
Um grande
encontro também foi realizado em Ojai, Califórnia, sede da American Foundation
e da escola. Conferências sobre Krishnamurti realizaram-se em universidades no
México, Ohio e Paris.
Muitas novas
publicações apareceram, entre elas o amplo trabalho de Evelyne Blau,Krishnamurti:
100 anos. Parece que logo haverá mais livros sobre K e seu trabalho do que
livros dele mesmo. Completarei minhas lembranças com algumas citações de K.
…Chega
alguém que está extraordinariamente curioso para saber como vive uma pessoas
como K.
Estas são
palavras do próprio K. Embora ele não as tivesse dirigido diretamente a mim, eu
sabia que eram para mim. Ele certamente acertou em cheio, pois eu estava
profundamente interessado em saber como tal extraordinária pessoa vivia. Para
mim não era tanto a história de sua vida (como os teosofistas descobriram um
menino negligenciado, que finalmente tornou-se o Mestre Universal); meu
principal interesse consistia em descobrir como a extraordinária pessoa K, que
inspirava tal respeito, de fato vivia sua vida diária.
Minha
curiosidade foi mais do que satisfeita. Ainda lembro hoje, dez anos depois de
sua morte, eventos que, acho, podem ser contados.
Em fevereiro
de 1986, com 90 anos, Krishnamurti ao final de sua extraordinária vida, voltou
a Ojai para morrer. Até o fim ele esteve interessado na humanidade e nas
pessoas que se aproximaram dele.
Apesar de
sua terrível fraqueza e dores, ele falou no seu modo simples e claro aos seus
colaboradores que chegavam de todo o mundo. Deixou o fardo da cooperação com
eles. Disse que o presidente e os secretários das fundações não deveriam ter
outro trabalho. Falou sobre a possibilidade de se formar um grupo de pessoas
cuja principal tarefa seria viajar e “manter a coisa toda unida”.
E ele podia
ainda rir. Quando perguntou sobre minha casa em Ojai e descobriu que ela ainda
estava sendo reformada, riu tanto que eu temi que os tubos de alimentação, que
passavam pelo nariz dele, pudessem machucá-lo.
Recentemente
li no Livro On living and Dying, a palestra de Bombaim de 7 de
março de 1962.
A pessoa tem
que estar indiferente – à saúde, à solidão, ao que as pessoas dizem ou não,
indiferente se alguém tem sucesso ou não, indiferente à autoridade. Se você
ouve alguém atirando, fazendo muito barulho com uma arma, você pode muito
facilmente acostumar-se com isso, e fica com o ouvido surdo; isso não é
indiferença. A indiferença surge quando você ouve o ruído sem resistência, fica
com esse ruído, caminha com ele infinitamente. Aí esse ruído não afeta você,
não o perverte, não o torna indiferente. Assim você ouve todos os ruídos do
mundo – o barulho dos seus filhos, de sua esposa, dos pássaros, o barulho dos
políticos falando – você os ouve completamente com indiferença e, portanto, com
compreensão. (página 99)
O que ele
diz ali sobre indiferença (que não é para ser confundida com negligência) me
faz lembrar de uma cena de seu leito de morte. Um incidente similar mas
diferente ocorreu em 1985 durante os encontros de Saanen. Na ocasião K estava
morando em meu apartamento em Rougemont e tinha queimado o dedo numa lâmpada
para leitura. Fiquei horrorizado quando vi a queimadura mas K descartou-a e
disse que não o aborrecia pois ele podia suportar a dor.
Chegaram
mensagens para ele de todo o mundo e elas foram lidas com ele na cama. Fiquei
surpreso com as coisas triviais e banais que se solicitava de um homem
morrendo.
Embora ele
tivesse dito a várias pessoas, inclusive a mim, alguns meses antes, que
morreria em breve, todos esperavam que ele superasse a doença. Quarenta anos
antes em Ojai, ele ficou tão mortalmente doente que seu médico, Keller,
desistiu. Um médico homeopata cuidou dele devotadamente durante um ano inteiro.
Isto me foi contado em Ojai pela esposa do médico que estava com mais de
oitenta anos.
Um relato
muito tocante dos eventos em torno de sua morte é dado pelo doutor Deutsch, seu
médico na ocasião, no livro de Evelyne Blau, Krishnamurti: 100 anos.
De On
Living And Dying (Sobre a vida e a morte):
Veja,
morte é destruição. É o fim: você não pode argumentar com ela. Não pode dizer:
“Não, espere mais uns dias”. Você não pode discutir; não pode rogar; é o fim; é
absoluta. Nós nunca enfrentamos nada definitivo, absoluto. Sempre damos a
volta, e por isso temos medo da morte. Podemos inventar idéias, esperanças,
medos, e ter crenças como “vamos ressuscitar, nascer de novo” – tudo isso são
artimanhas da mente buscando a continuidade que está no tempo, que não é um
fato, que existe apenas no pensamento. Sabe, quando falo sobre a morte, não
estou falando sobre sua morte ou minha morte – estou falando sobre morte, este
extraordinário fenômeno. (Página 100)
Assim,
quando falamos da morte, não estamos falando de sua morte ou de minha morte. Na
verdade não importa muito se você morre ou eu morro; nós vamos morrer,
felizmente ou em desgraça – morrer felizmente tendo vivido completamente,
integralmente, com todos os sentidos, com todo nosso ser, completamente vivo,
em completa saúde, ou morrer como pessoas miseráveis entrevadas pela idade,
frustradas, em sofrimento, nunca tendo conhecido um dia feliz, rico, nunca
tendo um dia em que víssemos o sublime. Assim, estou falando de Morte, não
sobre a morte de uma pessoa em particular. (Página 101)
Veja, nós
não amamos. O amor só surge quando não há nada, quando você negou o mundo todo
– não uma coisa enorme chamada “o mundo” mas apenas “seu mundo”, o pequeno
mundo em que você vive – a família, o apego, as brigas, a dominação, seu
sucesso, suas esperanças, suas culpas, suas obediências, seus deuses, e seus
mitos. Quando você nega todo esse mundo, quando nada permanece, nenhum deus,
nenhuma esperança, nenhum desespero, quando não há busca, então a partir desse
grande vazio vem o amor, que é uma realidade extraordinária, que é um fato
extraordinário não conjurado pela mente que tem uma continuidade com a família
através do sexo, através do desejo. (Página 102)
Eu pude
experimentar esta indiferença calorosa, afetuosa, que K menciona na palestra
citada quando estávamos viajando juntos para a Índia em 1985. Estávamos
sentados no carro em Brockwood Park, esperando para seguirmos para o aeroporto.
Tivemos que esperar um bom tempo por Mary Zimbalist. Podia-se achar que K
estaria nervoso na expectativa de viagem tão longa. Mas ele sentou-se e esperou
com total compostura e estava até alegre, embora tenha sido uma longa espera.
Saímos muito
cedo, o dia não tinha raiado e, contudo, toda a equipe e os alunos foi à Ala
Oeste e ficou esperando ao pé da escada para nos ver partir. Passamos por um
corredor de quase cem pessoas, e K apertou as mãos delas no caminho até a
porta. A atmosfera era solene. Pairava no ar a premonição de que esta seria a
última viagem de K a Brockwood. Dorothy Simmons, a antiga diretora da escola,
levou-nos ao aeroporto em seu carro, K e eu sentados no banco de trás. No
começo estava chovendo mas logo parou. Dorothy, no entanto, esqueceu de
desligar os limpadores de parabrisa, que começaram a arranhar no vidro seco.
Fiquei tenso e gostaria de ter dito algo, mas não se esperava uma reação de K.
E, como tantas vezes, sua reação foi diferente e inesperada. Ele simplesmente
disse: “Parou de chover”, o que fez Dorothy desligar os limpadores
imediatamente. No aeroporto o comovente momento da partida trouxe lágrimas aos
olhos das mulheres já que Dorothy e Mary ficariam e só eu voaria para a Índia
com K. Rita Zampese, que na ocasião era ainda chefe do escritório da Lufthansa
em Londres, levou-nos para a sala de trânsito. Toda minha bagagem consistia
numa mochila, e foi comigo para o avião. Hoje eu nem consigo imaginar como pude
fazer uma viagem com tão poucas coisas.
Na sala de
trânsito nos encontramos sentados junto a um grupo de mulheres e homens um
tanto desagradáveis, provavelmente da área de negócios, que estavam muito
ocupados com eles mesmos. Estavam falando, fumando e bebendo. K olhou-os com
olhos arregalados, e a expressão de seu rosto era um misto de espanto e horror;
contudo, não havia o mínimo desdém. Tivemos que trocar de avião em Frankfurt, e
lembro com que alegria K viajou no rápido ônibus elétrico. Uma vez no avião,
ele ficou no assento único na frente à direita que só a Lufthansa oferecia.
Eu, ao
contrário, sentei ao lado de um cavalheiro que lia um jornal e ouvia música ao
mesmo tempo. E mais, fazia movimentos de mão como um maestro, e deduzi daí que
ele seria músico.
Ele estava
também totalmente autocentrado e não mostrava o menor interesse em seus
vizinhos – neste caso, K e eu.
Ouve-se
muitas vezes das pessoas que vão às palestras que K aborda sempre o tópico em
que elas estão imediatamente interessadas. Desde que K se dirige muitas vezes a
milhares de pessoas, deve-se perguntar como isso é possível. O mesmo problema
está na mente de todos? É a consciência comum que todos partilhamos? Ou K
apenas escolhe uma pessoa que está intensamente envolvida com um problema?
Eu
pessoalmente experimentei a capacidade de K para ler pensamentos, e outras
pessoas deram testemunho disso. Em Madras, K e eu saímos para um passeio pela
praia juntos, com um ou dois outros amigos. Estávamos voltando e eu caminhava
atrás de K. Estava pensando – e os outros certamente sentiam isso – que K tinha
me dado mais atenção, quando ele se virou para mim e falou: “Não acho isso”.
Outro
incidente ocorreu na sala de jantar em Brockwood. Um jornalista perguntou-me o
que eu fazia para viver. A pergunta aborreceu-me e eu estava a ponto de
responder, um tanto provocativamente, que eu não fazia nada quando K, que
estava sentado perto de mim na mesa, adiantou-se e disse: “Eles fazem
torneiras”.
Outra vez,
em Rishi Valley, um indiano da África do Sul estava sentado em nossa mesa. Ele
era conferencista numa universidade sul africana, e K fez perguntas precisas e
penetrantes sobre a situação na África do Sul, tentando de vários modos fazê-lo
falar sobre seus sentimentos a respeito. Mas nosso convidado só respondia com
generalidades. Finalmente K, referindo-se de repente a mim, disse: ”O senhor
Grohe não podia suportar ficar na África do Sul”. Fiquei atônito.
Reconhecidamente eu havia dito a ele que trabalhara na África do Sul mas não
tinha dito que um ano depois, não agüentava mais ficar, embora minha família
tivesse uma bela casa e estivesse vivendo lá por muitos anos. Meu pai, temendo
os russos, mudou-se para a África do Sul depois da guerra. Quando uma vez eu
contei a K sobre o medo que os alemães tinham dos russos, ele disse que eles
estavam certos de terem medo dos russos. Aconteceu de eu estar presente uma vez
quando K estava sendo entrevistado pelo jornalista e editor checo, Jadry
Prokorny. Prokorny perguntou o que K teria feito se vivesse num país comunista.
K respondeu que teria que ser capaz de falar apenas para pequenos grupos. Em
conversas e palestras públicas ele repetidamente falava sobre a brutalidade dos
governantes comunistas. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo no mundo.
por (Friedrich Grohe)
Endereço: http://textosk.wordpress.com/outros/friedrich-grohe/
Uma matéria melhor que a outra.
ResponderExcluirParabéns amigo Alsibar!
Obrigado Paladino- não tem de quê !
Excluir_/\_
muito bom, valeu por compartilhar isso, cara!
ResponderExcluirCurti o artigo, obrigado por compartilhar, Namaste.
ResponderExcluirOla Leonardo e André... Obrigado pelos comentários e pela visita!
ResponderExcluirNamastê!