A JORNADA

                 

 Passei boa parte da minha infância em um ambiente mítico de forte religiosidade católico-cristã na cidade de Juazeiro do Norte- região do Cariri, no Sul do Ceará. Apesar de ter nascido em Fortaleza, moramos lá- eu e meus pais- por um tempo na casa dos meus avós paternos. Daí por que, muito cedo, conheci a religiosidade mitológica regional  que tem no Padre Cícero sua maior expressão. Para quem não sabe, "meu padim" foi uma espécie de Avatar do Sertão cearense. Meus avós eram muito católicos e frequentemente, nos lembravam sobre a importância de ir à missa todos os domingos . A máxima : "um domingo sem missa, uma semana sem Deus!- ainda ecoa em nossos ouvidos. Obviamente, que ninguém queria ficar sem Deus. 

Apesar de todo esse ambiente religioso, ainda muito jovem, comecei a questionar tudo em relação à igreja católica.
Na pré-adolescência, comecei a duvidar e refletir sobre seus dogmas, crenças e tradições. Minhas reflexões me levaram a não aceitar tudo como "verdades absolutas" . Foi então que "abandonei" o catolicismo e comecei uma jornada espiritual que só terminaria dezenas de anos mais tarde. Vieram os grandes conflitos, as crises existenciais, as perguntas fundamentais sobre o significado da vida, do homem e do sofrimento humano. Nessa época, entrei em contato com o ensinamento budista através do livro “O Pensamento Vivo de Buda” cujo exemplar ainda guardo comigo- uma verdadeira relíquia histórica.
Depois, veio a fase do ocultismo, ovnis e misticismo oriental, teosofia, psicologia transpessoal, Jung até chegar no então Bhagwan Shree Rajneesh (Osho) . Devorava tudo com grande entusiasmo e encantamento. Apesar de muito novo, era comum ver-me sentado em algum canto da casa, ou no quintal, meditando, ou seria melhor dizer tentando? Sentia que estava me  afastando das religiões mas não de Deus.  Andei por várias  movimentos religiosos : Espiritismo, Hare Krishna, o movimento Messiânico, Sei-cho-no-ie  Depois veio o Budismo Nichiren Daishoni, Perfect Liberty e, finalmente, o Zen-budismo-minha última parada pelo caminho das religiões budistas. 

Desde que eu soube sobre o Budismo que alimentei o sonho de um dia conhecer um mosteiro budista. Minha intenção não era apenas de visitar, mas de  me aprofundar em seus ensinamentos. Aos 16 anos por aí, consegui uma carona para conhecer mosteiro zen-budista de  Morro da Vagem em Ibiraçu no Espírito Santo.  Infelizmente, tive algumas decepções que me desiludiram e passei a desacreditar de todas as organizações religiosas.  Finalmente, me convenci que nunca encontraria o que procurava nas religiões.  Voltei para casa e continuei minha vida e minha busca espiritual.
Outro marco na minha trajetória foi o livro "Autobiografia de um Yogue" de Paramahansa Yogananda. Novamente reluziu a esperança do despertar. Yogananda falava muito em Kriya Yoga mas para aprofundar-me nela eu precisava ou ir para os Estados Unidos ou  fazer o curso por correspondência . Entrei em contato com a  Self-Realization Fellowship através de carta, mas não tinha condições financeiras para me inscrever no curso . Além disso, seria um investimento muito alto cujo retorno eu tinha sérias dúvidas . Afinal, será mesmo que o curso me daria algo a mais do que aquilo que o próprio livro já apontava? Preferi não arriscar. 
Um bom tempo depois, apareceu o livro “O Segredo” da Rhonda Byrne,  e minha viagem interior deu uma nova guinada. Esqueci a busca pelo despertar espiritual  segui na direção do que o livro apontava: a possibilidade de conquistar qualquer coisa com o uso da Lei da Atração, bastava mudar os pensamentos, atitudes e sentimentos. É verdade que conquistei muitos bens materiais, empregos e até relacionamentos usando suas técnicas- mas não a paz e a felicidade que eu tanto almejava.  Até que explodiu uma grande crise na minha vida pessoal. Todas as áreas da vida ficaram comprometidas. O meu castelo interno começou a se desmoronar e isso se refletiu externamente também. Com tanto caos interior  fiquei entre a loucura, a depressão e o suicídio.  

 No ápice da crise, eu encontrei o livrinho “As Ilusões da Mente” de Krishnamurti e comecei a lê-lo. Através dele, percebi vários erros que eu vinha cometendo ao longo da minha vida. Eu tinha a impressão de que o livro estava  me mostrando exatamente onde eu havia  falhado e como eu havia chegado ao fundo do poço. Mesmo tendo lido Krishnamurti  muitas vezes,  aquele pequeno livro teve  um  papel crucial na minha recuperação. Ao conhecer  minhas ilusões, restou-me rever minhas percepções e começar tudo de novo, seguindo novas rotas. Sentia que  Krishnamurti poderia ajudar-me  e assim comecei ler tudo de novo. Eu tinha uma forte intuição de que JK tinha a  “chave” da Matrix. Eu já sabia que ela encontrava-se dentro de mim, mas como como acessá-la?
Confesso que, muitas vezes, duvidei da iluminação de Krishnamurti . Talvez, ele estivesse enganado sobre algumas questões. Havia algumas hipóteses : ou JK estava em um patamar de elevação espiritual muito alto e, por isso, não conseguia estabelecer uma comunicação  com nós-pobres mortais escravos da Matrix.  Ou, talvez, ele não tivesse uma boa didática para fazer-nos compreendê-lo. Ou será que faltava-lhe  empatia para compreender as limitações e dificuldades dos seres humanos ?

Foi uma época de muita confusão e dúvidas mas
 não desisti. Continuei procurando, lendo , relendo, meditando e refletindo sobre tudo.  Um pensamento que sempre me vinha à mente era:  se Krishnamurti não estiver certo, quem estará? Algo me escapava à compreensão, mas o que? Percebi que essa situação não tinha acontecido só comigo, mas com muitos de seus leitores e até mesmo amigos pessoais que o acompanharam a vida inteira.
A questão era a seguinte : se Krishnamurti era um verdadeiro iluminado, a compreensão dos seus ensinamentos abriria as portas para o entendimento da Verdade Universal, a mesma ensinada por Buda, Cristo , Lao Tsé, Krishna e outros grandes iluminados. Essa "chave" revelaria  também o sentido  da vida, de mim mesmo, do universo e do sofrimento humano. Algo me dizia que certamente ele sabia onde estava a saída da  Matrix. Mas eu não  sabia como encontrá-la. E para acabar de completar, ele dizia que não havia um "como"? Ora, como ele pode dizer isso se tudo na vida tem um "como", uma forma, uma maneira? Minha mente se recusava a aceitar tal afirmação,  que eu via como absurda.
Mas, um dia, subitamente,
a compreensão chispou em minha mente feito um raio de luz, um  insight, um  "satori" Zen. E foi aí que compreendi : a chave sempre
 esteve lá, mas não sei por que eu não conseguia vê-la, como se estivesse invisível , como se houvesse um véu de  ignorância impedindo a percepção do óbvio.

Lembrei-me de um episódio que aconteceu comigo uma vez no natal:  eu estava na casa de um amigo e, de repente, faltou energia. Ele começou a procurar pela chave da porta pois eu precisava ir para casa. Acendeu uma vela e saiu procurando por ela em
 todos os lugares  sem sucesso. Depois de muita procura, ele olhou para a porta e viu que ela estava na fechadura. Rimos muito de nossa estupidez por que chave estava no lugar mais óbvio e mesmo assim não conseguimos encontrá-la. A ansiedade, a inquietação e o pensamento de que ela "devia estar em algum outro lugar" nos impediu de olharmos para o lugar mais óbvio. Por fim, rimos muito e eu fui embora.
Talvez  tenha sido este o motivo do  misterioso riso de Mahakashyapa o discípulo de Buda. Foi numa ocasião solene, o Desperto convocou a todos os seus discípulos anunciando que iria revelar a essência dos seus ensinamentos nunca antes revelada. Muitos discípulos distantes compareceram, todos estavam ansiosos em saber o que Buda teria para revelar-lhes. Mas, quando o Mestre chegou, ele nada disse. Ficou quietinho. Pegou uma flor e ficou sentado em silêncio, rodando-a em suas mãos em completa quietude. O tempo foi passando e as pessoas começaram a ficar inquietas, não entendiam  por que Buda não falava nada- apenas os olhava em silêncio girando a flor em suas mãos. 

Até que, de repente, uma gargalhada ecoou no meio deles- era Mahakashyapa. Através daquele riso, Buda compreendeu que Mahakashyapa havia compreendido a mensagem e então entregou-lhe a flor simbolizando a transmissão do verdadeiro conhecimento. Por
que Mahakashyapa riu? Simples : não havia nada a ser ensinado, nem buscado, nem dito. Daí, iniciou-se  a transmissão silenciosa do Zen
 não a organização, 
 mas sua essência, seu espírito que está além das palavras.
Assim também é o despertar : ele está sempre aqui. A chave secreta é apenas abrir os olhos, acender a luz e ver : "Ora, se não há chave, também não há “ o como".  Krishnamurti estava certo ! Muitas vezes ele fez perguntas enigmáticas ao estilo dos Koans Zen: "Qual o estado da mente que, de repente, percebe que não há 'como'? Não precisa responder! Experimentai! Ficai neste estado. Não façais nada, não forceis nada- este estado é o próprio Atemporal!" 

Ou seja, permanecei aí!  Apenas ficai 
neste estado em silêncio, sem fazer nada, sem buscar nada. E então vem um sentido de paz e liberdade que você nunca sentiu antes. Mas aí  a mente surge com suas dúvidas:
- Tem certeza que é isso mesmo? Só isso? Não preciso fazer, nem praticar nada? E se não for só isso?Deve ter mais coisa! Cadê as sensações? Cadê as luzes? As visões? Cadê os poderes? Eu não sinto nada!E aí começa tudo de novo: o medo, a dúvida, os pensamentos a inquietação, a confusão, a dor, a tristeza- e a eterna busca. Ora... este estado não é pra sentir. O "eu", a mente conceitual, não pode "experimentar" esse estado. Compreendeu?
Vamos pensar uma situação muito conhecida, mas apropriada para ilustrar essa questão. Imagine um peixe, que de repente, houve falar em um Deus chamado Oceano. É dito que ele é grande, profundo infinito e que ele é tudo e está em Tudo. Ora, se este peixe decidisse  procurar por esse Deus, não seria isso uma tolice? O peixe já vive e respira nele e por mais que ele queira ver a extensão do Oceano nunca o verá. Precisa apenas senti-lo e tomar consciência que ele já está nele e que, portanto, não há nada para se fazer, nem nenhum lugar para se ir. Para encontrá-lo, basta compreender a verdade de que o Oceano é tudo no universo do pequeno peixe: está acima, embaixo, dentro e fora dele.
Sei que é difícil compreender que a prática, o “como”, o método,  apenas perpetua nossa  prisão da Matrix. Isso porque já estamos tão dominados pela ideia do "fazer" que não conseguimos aceitar outra forma de conceber as coisas. Mas, sendo bem direto, não seria isso uma tolice? Observe as coisas simples do dia-a-dia. Nada é feito por nós. A grama cresce, os astros se movimentam, a vida de nossas células, tudo, tudo... existe e se mantém não graças a nós mas INDEPENDENTE e apesar de nós. Quando o homem faz ou realiza algo no Mundo, na verdade ele está sendo apenas INSTRUMENTO da  ação divina. 

De fato, nada é feito por ele, mas através dele. JESUS nunca disse que seus poderes eram dele mesmo, Francisco de Assis pedia a Deus para ser um  Instrumento da Paz, Ghandi nunca teria conseguido a vitória contra o Império Inglês se uma força maior não o guiasse. Assim também aconteceu com todos os grandes Reformadores  e Bem-feitores da humanidade. Da mesma forma, o esforço para se alcançar Deus que "já é" e está em tudo"-é ilusório. As práticas , técnicas e disciplinas que tentam levar o homem conscientemente até Deus está na verdade afastando-o porque seja onde estiver no Universo manifesto, Deus estará lá como presença essencial.
Ao compreender isso, parei de buscar. E então... um dia, explodiu aquela dimensão além das palavras e definições . A busca terminou e se você me perguntar: você encontrou? Eu responderia que a pergunta está errada. Não há um "você", nem um "eu" para encontrar nada. E também não há nada para ser encontrado. Há um estado em que esta noção dualística desaparece totalmente.  E o que resta? Só experimentando para saber. Não dá pra responder. É algo realmente indescritível. Posso apenas afirmar que existe e que é sagrado e diferente de tudo o que a mente pressupõe, pensa, imagina ou idealiza.  

Não há mérito em ver a verdade do fato. Todavia, a Graça da compreensão é Divina. Minha mente continua "normal"- mas há algo  diferente ali . Uma nova energia, um sabor diferente em tudo que faço, vejo ou sinto.  As coisas são sentidas como uma cadeia sequencial de acontecimentos. As ações "acontecem" apesar e independente de "MIM". Continuo vivendo, fazendo quase "tudo" que fazia antes, mas tudo sob uma  perspectiva de impessoalidade: não sou Eu quem faz ou deixa de fazer. Se a ação está lá eu apenas a permito. Se a sensação está lá eu simplesmente fluo com ela. Se ela não está, não está. Aquele velho "eu-centro" que observa, julga, compara, deseja, comenta, nomeia, altera, critica, o que é percebido está  neutralizado.
Se você conseguiu chegar até o final desse relato- parabéns. O objetivo dele não é para me engrandecer ou me arvorar em nada-mas ajudar aqueles que, por ventura, estejam PERDIDOS, confusos, desesperados, procurando uma Luz no "final do túnel"- exatamente como eu já estive várias vezes ao longo da vida.

Uma última consideração: sem humildade ninguém chega a compreensão nenhuma. Humildade , coragem e entrega são essenciais nos momentos de crise . Temos que assumir nossa própria nulidade e impotência. Por isso o autoconhecimento é tão importante. Não de acordo com "ideais" e projeções fantasiosas. De nada vale dizer : Eu sou a Luz, Eu sou o Átman (Alma), o Ser, a Consciência etc etc isso apenas fortalece e enrijece o EGO - pois é ele quem se identifica com algo maior do que ele mesmo como forma de perpetuar-se.
O que somos?  Um amontoado de memórias, desejos em conflito,  pensamentos reativos, resíduos do passado, sonhos e projeções infindáveis - somos a eterna busca pelo permanente. Quem terá coragem de ver a "verdade" sobre si mesmo? De dizer : " Eu não sou nada, não sei de nada, nem posso nada. Preciso de ajuda! Por isso, de hoje em diante eu entrego a Deus a minha vida!" Esta atitude é um duro golpe no poder do Ego. É o primeiro passo no caminho da LIBERDADE, da LUZ , da Paz e Sabedoria. Sem abandonarmos o Ego, nunca sairemos da  Matrix e nunca nos livraremos de suas Ilusões para encontrar o estado de percepção Atemporal, Eterno e livre dos tentáculos do observador.
LIBERTAR-NOS DAS ILUSÕES E DO SOFRIMENTO PSICOLÓGICO INTERIOR
 é, e sempre foi,  o objetivo último  de  todos os Avatares, Yogues, Iluminados e sábios que viveram sobre esta terra !
Autor : ALSIBAR