sábado, 1 de março de 2014

LEMBRANÇAS DE KRISHNAMURTI- Friedrich Grohe


A BELEZA DA MONTANHA

  Lembranças de Krishnamurti

  (Friedrich Grohe)

PREFÁCIO

Estas lembranças de Krishnamurti, ou “K” como ele muitas vezes referia-se a si mesmo, compreendem os três últimos anos de sua vida, durante os quais convivi pessoalmente com ele. A maioria das pessoas conhece Krishnamurti através de seus livros e fitas, ou por terem assistido às palestras públicas que ele costumava fazer pelo mundo. Várias vezes K disse sobre si mesmo: A pessoa não é importante, mas o que ela diz é. Mesmo assim, encontrei muitas pessoas ardentemente interessadas em saber como ele levava sua vida diária. Por isso gostaria de lembrar aqui eventos aparentemente insignificantes que, contudo, podem mostrar que este extraordinário ser humano de fato viveu os chamados “Ensinamentos”.
Os Ensinamentos contém grande beleza, e a beleza só pode existir quando o “ego” está ausente – como K freqüentemente apontou. Assim, ele mesmo era sem “eu”.
Gostaria de citar aqui uma passagem do livro Questions and Answers:
“Pergunta:
 Entendi as coisas que discutimos aqui durante estes encontros, mesmo que só intelectualmente. Acho que são verdadeiras num sentido profundo. Agora, quando voltar para meu país, devo falar sobre seus ensinamentos com amigos? Ou, desde que sou ainda um ser humano fragmentado, apenas provocarei mais confusão e prejuízo falando sobre eles?

Krishnamurti:
Toda pregação religiosa dos sacerdotes, dos gurus é divulgada por seres humanos fragmentados. Embora digam, “Somos seres humanos superiores”, eles são ainda seres humanos fragmentados. E o interrogante diz: “De algum modo entendi o que você diz, parcialmente, não completamente; não sou um ser humano transformado. Entendo, e quero falar para outros o que entendi. Não digo que entendi o todo, entendi uma parte. Sei que é fragmentado, sei que não está completo, não estou interpretando os ensinamentos, estou apenas informando o que entendi.” Bem, o que há de errado nisso? Mas se você diz: “Compreendi o todo completamente e estou lhe contando” – aí você se torna uma autoridade, o intérprete; tal pessoa é um perigo, ela corrompe outras pessoas. Mas se vi algo que é verdadeiro, não estou iludido; é verdade e nisto há uma certa afeição, amor, compaixão; sinto isso muito fortemente – então naturalmente eu não posso evitar  falar para outros; seria bobagem dizer que não o farei. Mas previno meus amigos, digo, “Olhem, tenham cuidado, não me coloquem num pedestal”. O orador não está num pedestal. Este pedestal, esta plataforma, é só por conveniência; não lhe confere nenhuma autoridade. Mas como o mundo é, os seres humanos estão ligados a uma coisa ou outra – a uma crença, a uma pessoa, a uma idéia, uma ilusão, um dogma – assim eles são corrompidos; e o corrompido fala e nós, estando também de algum modo corrompidos, nos juntamos à multidão.

Vendo a beleza destas montanhas, o rio, a extraordinária tranqüilidade de uma nova manhã, o contorno das montanhas, os vales, as sombras, como tudo está em proporção, vendo tudo isso, você não escreverá para seus amigos dizendo, “Venham aqui, vejam isto”? Você não estará interessado em si mesmo mas apenas na beleza da montanha.”
Nessas reminiscências, gostaria de partilhar com meus amigos, e com quem mais possa estar interessado, a beleza da montanha.
INTRODUÇÃO
Durante um período de mais de setenta anos Krishnamurti proferiu milhares de palestras públicas e debates em muitos países mas nunca disse uma palavra em excesso. Seu discurso era preciso e claro, e sua aparência elegante e bem cuidada. Ele era basicamente reservado, ou como algumas vezes observou, tímido. No entanto, daria toda sua atenção a quem quer que se dirigisse a ele, se interessando por todos os aspectos e detalhes. Seu amor pelas pessoas significava que qualquer um podia aproximar-se dele.
Desde 1983 – quando o conheci – estive em contato regular com ele, acompanhando-o em alguns de seus passeios e indo com ele em sua última viagem à Índia; nos encontrávamos em Brockwood Park, Saanen e Ojai regularmente. Em Brockwood ele providenciou que eu tivesse um quarto na chamada “West Wing” (Ala Oeste), a parte do complexo da escola em que ele mesmo vivia.
Desde que foi criada em 1969, K passava cerca de quatro meses por ano em Brockwood Park. Porque ele tinha um profundo interesse em iniciar um centro de estudos para adultos ali, gostaria de citar sua declaração sobre o significado de Brockwood Park e do futuro centro.
Brockwood hoje e no futuro

Há quatorze anos Brockwood é uma escola. Começou com muitas dificuldades, falta de dinheiro, e assim por diante, e todos nós ajudamos a construí-la até a presente condição. Têm havido encontros todos os anos, seminários e todas as atividades de gravação de áudios e vídeos. Chegamos ao ponto não só de avaliarmos o que estamos fazendo mas também de fazermos de Brockwood mais do que uma escola. Embora tenhamos nos encontrado nos últimos vinte e dois anos durante um mês e pouco em Saanen, Brockwood é o lugar em que K despende mais tempo e energia. A escola tem uma boa reputação e a sra. Dorothy Simmons colocou nela sua maior energia, sua paixão. Todos nós ajudamos a construir a escola apesar de grandes dificuldades, tanto financeiras quanto psicológicas.
Agora Brockwood deve ser mais do que uma escola. Deve ser um centro para aqueles que estão profundamente interessados nos Ensinamentos, um lugar onde podem ficar e estudar.
Antigamente um “ashrama” – que significa retiro – era um lugar aonde as pessoas iam para acumular suas energias, morar e explorar aspectos religiosos mais profundos da vida. Lugares modernos deste tipo geralmente têm algum tipo de líder, guru, abade ou patriarca que guia, interpreta e domina. Brockwood não deve ter tal líder ou guru, porque os próprios Ensinamentos são a expressão desta verdade que as pessoas sérias devem descobrir por si mesmas. O culto pessoal não tem lugar aqui. Temos que enfatizar este fato.

Infelizmente nossos cérebros são tão condicionados e limitados pela cultura, a tradição e a educação que nossas energias ficam encarceradas. Nós caímos em rotinas confortáveis e nos tornamos psicologicamente inúteis. Para compensar gastamos nossas energias com interesses materiais e atividades egocêntricas. Brockwood não deve se render a esta tradição batida. Brockwood é um lugar de aprendizagem, de aprender a arte de questionar, a arte de explorar. É um lugar que demanda o despertar da inteligência que surge com a compaixão e o amor.

Não deve se tornar uma comunidade exclusiva. Geralmente comunidade implica alguma coisa separada, sectária e fechada em propósitos idealistas e utópicos. Brockwood deve ser um lugar de integridade, profunda honestidade e do despertar da inteligência em meio da confusão, do conflito e da destruição que acontecem no mundo. E isso não depende de qualquer pessoa ou grupo mas da consciência, da atenção, do afeto das pessoas que lá estão.

Tudo isso depende das pessoas que vivem em Brockwood e dos curadores da Fundação Krishnamurti. É deles a responsabilidade de produzir isso.
Assim cada um tem que contribuir. Isso não se aplica apenas a Brockwood mas a todas as outras Fundações Krishnamurti. Parece-me que se pode estar perdendo tudo isso de vista, ficando-se envolvidos profundamente por diversas atividades, presos em interesses particulares de modo que não se tem tempo nem disposição para se interessar profundamente pelos Ensinamentos. Se este interesse não existe, as Fundações não têm significado. A pessoa pode falar indefinidamente sobre o que são os Ensinamentos, explicar, interpretar, comparar e avaliar mas tudo se torna superficial e realmente sem significado se a pessoa não está de fato vivendo os Ensinamentos. Continuará a ser responsabilidade dos curadores decidir que forma Brockwood terá no futuro, mas Brockwood deverá ser sempre o lugar onde a integridade pode florescer. Brockwood é um belo lugar com antigas e magníficas árvores, cercado por campos, prados, bosques e a quietude do interior. Deve ser sempre mantido assim pois beleza é integridade, bondade e verdade.
                                                                    J. Krishnamurti
                                                                                    1983



PRIMEIROS ENCONTROS COM K

Foi em 1980 que li pela primeira vez um livro de Krishnamurti, A Questão do Impossível.
Embora eu ache que Krishnamurti não pode ser lido como se lê uma novela, não pude largá-lo. Ele parecia dizer o oposto do que se aprendeu e experimentou. Parece termos sentido antes vagamente o que ele expressa ali em linguagem clara, simples e irresistível.

Embora em 1981 eu soubesse que Krishnamurti costumava dar palestras públicas todo ano em Saanen, Suíça, não tinha vontade de assisti-las já que estava bastante satisfeito apenas estudando seus livros. De fato, perdi o interesse em filosofia, psicologia, literatura, arte, que um dia me cativaram, porque de repente percebi: “É isso!” Os livros de outras pessoas simplesmente tornaram-se supérfluos.
Este foi um tempo de grandes mudanças para mim. Além de outras coisas, estava prestes a me retirar da vida de negócios. Antes eu não tinha muito tempo para encarar questões essenciais
Mas agora, de uma vez só, K tornou claro para mim a importância de interessar-se por assuntos básicos como amor e morte, prazer e dor, liberdade, desejo e medo. Quanto mais eu explorava os ensinamentos, mais fascinantes eles se tornavam.

Fui pela primeira vez às palestras de Saanen em 1983. Sentado nos degraus que levavam à tenda gigantesca onde cerca de duas mil pessoas se reuniam, eu ouviria K. Aqui, sob a barraca, eu estava protegido do calor e ainda podia aproveitar a brisa fresca. Como eu em geral vinha caminhando desde Rougemont, o que levava cerca de uma hora e meia, e chegava logo antes das palestras começarem, podia usar a entrada lateral e não tinha que sentar entre a multidão. Bem em frente ao tablado de onde K falava, as pessoas ficavam sentadas de pernas encolhidas e apertadas umas contra as outras; cada polegada de espaço era altamente valorizada. Em Saanen e Brockwood as pessoas ficavam a noite inteira na fila em frente da tenda para serem as primeiras a entrar. Nos Estados Unidos e na Índia era um pouco mais calmo.

Este primeiro verão foi tão quente que no meu caminho de volta para Rougemont tomava banho no rio Fenilbach que normalmente estaria muito frio para que isso fosse possível. Na tenda podia-se comprar livros de K traduzidos em várias línguas, e fiquei feliz ao encher minha mochila com eles. Era subjugante ouvi-lo. Ele emanava tanta energia que eu simplesmente não podia sentar diretamente em frente a ele. Ele falava simples e claramente, com poucos gestos e sem retórica. Ouvindo-o eu esquecia comida e bebida e nem notava o calor. Durante uma palestra, percebi um jovem excitado caminhando entre as filas de pessoas. Ele abordou uma senhora que usava um colar com um retrato do guru Rajneesh (“Bhagwan”) e desdenhosamente sacudiu-o. Passou então em frente a K e continuou chutando os ventiladores que ficavam ao longo da tenda. Conforme se aproximava de mim, gesticulava para que eu saísse do seu caminho. Esperando um chute, eu me esquivei embora nada tenha ocorrido. Praguejando, caminhou até K e pegou o microfone e dirigindo-se a K e à multidão, falou em alemão: Os seguidores do Rajneesh devem sair, eles não são bem vindos aqui. Virando-se diretamente para Krishnamurti, ele perguntou-lhe: Não estou certo, senhor Krishnamurti? O senhor acha isso também?  O homem parecia extremamente agitado, até perigoso. Algumas pessoas da fila da frente recuaram, e um homem enorme que parecia um boxeur estava a ponto de se atirar sobre ele. Uma atmosfera de extrema violência espalhou-se na tenda provocando tumulto. Mas neste exato momento, K interferiu dizendo: Não toque nele! Aparentemente o intruso gostou e repetiu várias vezes;

Não toque nele, não toque nele. Krishnamurti acenou na direção dele, e o homem finalmente se acalmou e deixou a tenda depois de resmungar mais algumas palavras. K continuou a palestra como se nada houvesse acontecido.

Um fato semelhante aconteceu durante uma de suas palestras em Ojai quando uma jovem saltou sobre a plataforma onde Krishnamurti estava. Ele ficou surpreso mas imediatamente se controlou e disse a ela que, se ficasse quieta, ele não se importaria que ela sentasse perto dele na plataforma. Ela de fato ficou quieta, de vez em quando girando a cabeça e fazendo trejeitos enquanto K continuava a palestra. No final, ele se inclinou para ela e disse: Acabou.

A primeira vez que fui às palestras em Saanen ainda não tinha tido contato com as fundações Krishnamurti ou com as escolas. Logo depois desta primeira visita, li uma declaração em outro livro de Krishnamurti, Education and the Significance of Life, que dizia em essência: Se você não está satisfeito com as escolas existentes, por que não começa sua própria? Isso me deu a idéia de iniciar uma escola na Suíça. Pensei que o país em que os grandes educadores Pestalozzi e J.J.Rousseau haviam atuado seria o lugar adequado para isso. Entrei em contato com o Comitê Krishnamurti em Genebra e soube que uma professora de Brockwood estava voltando para sua Suíça natal nesta ocasião. Entrei em contato com ela, e logo depois ela e eu, juntos com vários outros amigos dela que também se interessaram pelo projeto, começamos a procurar um prédio adequado para uma escola. Encontramos um lugar muito interessante em Chandolin, no Valais. Era um hotel antigo, bem preservado, lindamente localizado com uma vista de Matterhorn, e espaçoso o suficiente para abrigar cinqüenta ou sessenta alunos. Durante as palestras de Saanen em 1983, K soube do projeto e pediu para encontrar comigo. Assim, depois da palestra fui para o Chalet Tannegg, em Gstaad onde ele ficava. Nos encontramos em 1 de agosto de 1983. Como sabia que K dava uma atenção especial a sua aparência, fui bem barbeado e bem vestido. Porque as tardes eram muito quentes, pedi que a reunião fosse pela manhã. Quando nos encontramos, no entanto, ele estava ainda com uma roupa simples de esporte, pela qual se desculpou. Nesta ocasião percebi que K podia chegar num lugar calma e silenciosamente, quase sem ser notado. No seu jeito cuidadoso, perguntou sobre minha vida. Rimos e falamos sobre alpinismo – eu era um alpinista entusiasmado – e sobre várias outras coisas.

Mostrando a paisagem do lado de fora, eu disse: Escalei todos estes picos. Ele, mostrando as florestas e colinas, disse: E eu estive em todas as trilhas destes bosques.Quando eu disse que as montanhas eram muito mais bonitas de baixo do que do alto, ele respondeu com um entusiástico Sim!

Ele me perguntou se eu descia a montanha verticalmente ou em ziguezague. Ficou impressionado quando contei que algumas vezes descia verticalmente. Ele disse que quando era jovem gostaria de ter esquiado mas não lhe permitiram pois consideravam este esporte muito perigoso para ele. No entanto, praticou outros esportes. Na juventude jogou tênis, era especialista em golfe, caminhadas, ciclismo e natação. Mais tarde, praticaria caminhadas rápidas todos os dias. E por toda vida praticou ioga; em seu último mês de vida, seu cozinheiro indiano se alegrava cada vez que via K fazendo seus exercícios de ioga, o que demonstrava que ele havia ganho um pouco de energia.

Quando jovem, ele havia visitado Davos com alguns amigos holandeses, e em Adelboden morou numa cabana na montanha durante algum tempo. Costumava quebrar o gelo do poço todo dia para se lavar, até que contraiu bronquite. Ele me contou que uma vez na Califórnia ficou sozinho numa cabana. Lá havia um gramofone e um único disco, a Nona Sinfonia de Beethoven. Todo dia ele ouvia, até que sabia tudo de cor. Costumava ser muito receptivo à música e gostava particularmente de Beethoven e Mozart, da canção sânscrita e da música clássica moderna.

Quando pessoas chegavam na cabana e perguntavam sobre o santo que vivia ali, ele dizia que ele havia acabado de sair.
K tinha grande senso de humor, como testemunhei em várias ocasiões. Ele se divertiu, por exemplo, quando lhe falei que nossa firma produzia torneiras sanitárias. Eu lhe disse como era difícil conseguir que a equipe de trabalho cooperasse e como eu queria que houvesse relações amistosas entre os colegas. K respondeu: Você sabe como é difícil conseguir que as pessoas cooperem? Logo descobri que mesmo nas fundações as pessoas tinham dificuldades de trabalhar juntas. E eu ainda não sabia nada sobre os problemas nas escolas de Ojai, Brockwood e Índia.

Quando falamos sobre a escola que eu queria começar na Suíça, K apontou: É muito difícil começar uma escola. Nós tentamos na Suíça, na Holanda e na França, mas não tivemos sucesso até encontrarmos Brockwood. A Inglaterra, com seu sistema de ensino liberal, mostrou-se o país mais adequado. Escolas sempre precisam de dinheiro!Respondi, Bem, espero não estar jogando meu dinheiro pela janela. K riu sinceramente.

A questão de como realizar algo bom através do uso correto do dinheiro ocupou minha mente por algum tempo. Depois das devidas considerações, ficou claro para mim que organizações sociais e ecológicas eram muito limitadas na sua capacidade de produzir uma mudança fundamental. Mesmo medidas econômicas ou políticas não pareciam capazes de prevenir significativamente a destruição da terra pela humanidade. A única possibilidade era uma mudança profunda na psique humana, junto com o tipo certo de educação. Era esta a intenção das várias escolas de K. Portanto, quando perguntei a K se ele achava que o dinheiro faria algum bem, sua resposta simples me surpreendeu.Sabe, um dia uma pessoa me deu algum dinheiro, e com este dinheiro compramos Brockwood Park.

Embora K tenha me prevenido sobre o projeto da escola, continuamos com nossos planos. Mas era difícil encontrar professores, e dificilmente havia perspectiva de alunos. Visitamos Brockwood nesta ocasião e, durante o almoço, mostrei a K algumas fotografias de Chandolin. De repente ele se virou para a professora suíça e perguntou, apontando para mim: Ele é o dinheiro. Você construiria uma escola sem ele? Ela não pode dar uma resposta clara. Então ele virou-se para mim e perguntou: Você tem os professores certos, os alunos certos e os pais certos? Neste momento, as coisas assumiram sua dimensão. Não tínhamos nada disso. Ficou claro para mim, então, que não fazia sentido começar uma escola nova quando já havia escolas das fundações Krishnamurti na Inglaterra, Índia e Estados Unidos. Estas ele visitava regularmente, investindo muito tempo e energia nelas. Percebi que era muito mais importante ajudar as escolas existentes em suas dificuldades financeiras e outras do que começar novas.

Além de dar palestras públicas para milhares de pessoas, K conversava regularmente com alunos, professores e equipes das escolas e fundações, individualmente ou em grupos. Ele tinha extraordinária habilidade para resolver problemas práticos, tendo muito cuidado com detalhes. Sabia exatamente onde estava a causa real dos problemas. Eu lhe disse certa vez que ele teria sido um excelente empresário, se houvesse optado pelos negócios. Ele riu.

Esta troca ocorreu depois que o conheci um pouco melhor. Mas mesmo durante nossos primeiros encontros, ele mostrava ser flexível, uma pessoa de mente aberta, com grande senso de humor; um homem modesto e de genuína bondade. Eu estava muito interessado em como uma pessoa com “insights” tão esmagadores vivia sua vida diária, que tipo de pessoa era ele. Ele não tinha aborrecimentos e anseios? Nunca ficava furioso, violento ou angustiado? Não dava para imaginar como um ser humano sem ego – como ele – podia viver neste mundo. Mary Lutyens, que o conhecia desde quase toda sua vida e que era sua biografa autorizada, não foi capaz de responder a pergunta sobre quem ele de fato era. Se perguntado diretamente ele diria: Não sei, mas você pode descobrir.

VISITA A BUCHILLON

Em agosto de 1983, K visitou-me em Buchillon em seu caminho entre Saanen e o aeroporto de Genebra. Nos encontramos no belo pátio do Chateau Allaman, com suas magníficas árvores. K entrou em meu carro, enquanto Mary Zimbalist e o doutor Pachure, que o acompanhavam, nos seguiram no carro deles. Dirigindo para Buchillon, tinha a estranha sensação de que não havia ninguém a meu lado. Várias pessoas me disseram depois que tinham tido experiências semelhantes com K. Depois disso, todas as vezes que ele declarou: Não sou ninguém, lembrava-me deste incidente.

Nesta ocasião conversei com ele, embora sentisse que de algum modo eu o estava perturbando. Quando perguntei se ele conhecia esta região, imediatamente respondeu. No entanto, tive a sensação de que ele havia voltado de um lugar remoto para responder.

Em várias ocasiões K observou que dificilmente tinha lembranças do passado, e que não carregar este fardo lhe dava tremenda energia. Em Rishi Valley encontramos um velhinho que insistia que conhecia K há muitos anos. K não lembrava dele e depois me disse:Tout le monde connaît le singe, mais le singe ne connaît personne. (Todos conhecem o macaco, mas o macaco não conhece ninguém.)

Depois de chegarmos a Buchillon, fomos até o Lago. K parou na trilha entre as árvores, escutou, e disse: Silêncio. Ele provavelmente estava se referindo apenas ao silêncio exterior. Aí, também, ele pegou um galho quebrado no caminho e cuidadosamente colocou-o de lado. Deu uma olhada no sistema de irrigação e imediatamente percebeu como funcionava. Também identificou a Araucária em frente da casa, mesmo ela sendo bastante exótica, e mostrou para Mary as particularmente belas petúnias que eu cultivava na jardineira. Na margem do lago, ele me disse que muitos anos atrás ele e seu irmão haviam passado um feriado em Amphion, na outra margem, entre Thonon e Evian. O hotel em que ficaram não era muito confortável. Não havia nem mesmo água quente suficiente para que eles se aquecessem depois de nadarem no lago gelado. K admitiu que esta foi a causa de seu irmão ter contraído a tuberculose que finalmente levou-o a morte em Ojai em 1925.

Um ano depois, em seu caminho para Saanen, K parou para almoçar em Buchillon. Quando entrou na sala de refeições, exclamou: Huh! E cobriu os olhos por um momento. Havia várias pinturas com cores fortes nas paredes. Durante o almoço ele olhou cuidadosamente um quadro pendurado na parede em frente a ele. O que quer que K olhasse, fazia-o intensamente e por longo tempo. Ele me contou como, antes da guerra, em Paris, lhe foi mostrado o quadro Guernica de Picasso. Depois de observá-lo por longo tempo, perguntou: O que é tudo isso? Goya era um artista que K apreciava, entre outras razões, talvez porque ele tenha dito que ainda estava aprendendo aos noventa anos de idade, mas ele achava que os artistas modernos só aumentavam a confusão geral e a divisão ao expressarem o caos, a agressividade e a fragmentação.

Quando subseqüentemente cheguei a Brockwood Park, Dorothy Simmons disse que quando voltou, K falou entusiasticamente sobre sua visita à casa em Buchillon.
Quando em Brockwood, fui convidado para ir às reuniões de K com os professores, a equipe e os alunos. Nestes encontros todos pareciam terrivelmente sérios quando K chegava na sala. Ele sentava de frente para o grupo encarando um por um. Sentia-me feliz por ter sido convidado para a reunião e, por isso, dei-lhe um grande sorriso quando ele olhou para mim. Radiante ele sorriu de volta, de um modo que ninguém havia feito antes. As pessoas em minha frente se viraram para ver o que estava acontecendo atrás delas.

OJAI

Em maio de 1984 fui para Ojai, para as palestras. Foi me dito que “Ojai” na linguagem dos índios americanos significa “o ninho”. Uma grande sensação de paz impregnava todo o vale; era possível senti-la quando se chegava em Ventura, especialmente no crepúsculo ou durante o anoitecer. Retornando regularmente, K passou grande parte de sua vida em Ojai, e foi ali que, em 1925, a morte levou seu irmão e, em 1986, o próprio K. Onde quer que K vivesse, convidava  para o almoço amigos e outras pessoas interessantes com quem ele quisesse conversar. Este era o costume em Saanen e Rajghat, e também em Madras e Rishi Valley; mas não em Brockwood, onde ele almoçava na sala de refeições com os alunos e a equipe de trabalho. Michael Krohnen, que aprendeu a cozinhar com Alan Hooker, proprietário do famoso Ranch House Restaurant, era o chef em Ojai. Além de preparar as refeições, era tarefa informal de Michael durante o almoço dar as notícias do mundo para Krishnamurti. Ele era naturalmente bem dotado para esta tarefa; Michael tinha também um voz forte e K ficou um pouco surdo no fim da vida. Numa ocasião K comentou rindo: Primeiro vão se os dentes, depois os ouvidos e os olhos e, finalmente você desce à terra. Noutra ocasião citou um provérbio italiano: Todo mundo tem que morrer; talvez eu também.

Em Ojai havia um buffet de self service, e depois da refeição todos pegavam seus pratos e levavam para lavar na cozinha. K servia-se por último e depois levava sua bandeja para a cozinha como todos os outros, inclusive as panelas. Quando chegava para o almoço, costumava ir até a cozinha primeiro, espiar as panelas e saber de Michael o que havia para o almoço daquele dia. Depois ia para a sala e chamava os convidados para a mesa. Algumas vezes, havia vinte pessoas.

K era de fato uma pessoa muito tímida. Numa ocasião, quando um grande número de visitantes chegou para o almoço, eu o ouvi perguntar timidamente: Quem são todas estas pessoas? Aproximando-se sem ser visto, ele modestamente saiu de trás de um biombo e chamou os convidados dizendo: Madame est servie.
K sempre entrava na sala pela porta da cozinha. Uma vez tentamos calcular quantas vezes K havia passado por aquela porta. Deve ter sido cerca de milhares de vezes enquanto Michael era “chef”.

Durante um almoço K disse que pretendia fazer um documento sobre a Oak Grove School, que seria distribuído durante as palestras públicas. Como a Fundação não tinha um bom copista, parecia difícil imprimir o documento em tempo. Isso me levou a fazer a primeira doação à American Foundation sob a forma de um fotocopista de alta qualidade. O documento foi chamado A Intenção da Escola de Oak Grove e, como o considerei muito pertinente, apresento-o aqui:

“A Intenção da Escola de Oak Grove
Está se tornando mais e mais importante num mundo destrutivo e degenerado que exista um lugar, um oásis, onde a pessoa possa aprender um modo de viver íntegra, sadio e inteligente. A educação no mundo moderno tem se preocupado não com o cultivo da inteligência, mas do intelecto, da memória e de suas habilidades. Neste processo pouco acontece além da passagem de informação do professor para o aluno, do líder para o que segue, produzindo um modo de vida superficial e mecânico. Nisso há pouca relação humana.

Seguramente a escola é um lugar onde se aprende sobre a totalidade da vida. A excelência acadêmica é absolutamente necessária, mas a escola tem que incluir muito mais do que isso. É o lugar onde o professor e o aluno exploram não só o mundo exterior, o mundo do conhecimento, mas também seu próprio pensar, seu próprio comportamento. A partir daí eles começam a descobrir seu próprio condicionamento e como ele distorce seu pensar. Este condicionamento é o ego ao qual se dá tremenda e cruel importância. A liberdade do condicionamento e de suas misérias começa com esta atenção. Apenas com tal liberdade o verdadeiro aprendizado pode ocorrer. Nesta escola é responsabilidade do professor sustentar com o aluno uma exploração cuidadosa nas implicações do condicionamento e, assim, acabar com ele.

Uma escola é o lugar onde a pessoa aprende a importância do conhecimento e suas limitações. É um lugar onde se aprende a ver o mundo não de um ponto de vista particular ou conclusão. Aprende-se a olhar a totalidade do esforço do homem, sua busca da beleza, sua busca da verdade e de um modo de viver sem conflito. O conflito é a própria essência da violência. A educação não tem se preocupado com isso, mas nesta escola nossa intenção é entender a realidade e sua ação sem qualquer ideal preconcebido, teorias ou crenças que produzem uma atitude contraditória em relação à existência.

A escola está interessada em liberdade e ordem. Liberdade não é a expressão do próprio desejo, escolha ou interesse próprio. Isso leva inevitavelmente à desordem. Liberdade de escolha não é liberdade, embora pareça ser; assim como ordem não é conformismo ou imitação. A ordem só pode surgir com o “insight” que escolher é, em si mesmo, a negação da liberdade. Na escola a pessoa aprende sobre o movimento do pensamento, o amor e a morte, porque tudo isso é nossa vida.

Desde tempos antigos o homem tem buscado algo além do mundo material, algo imensurável, algo sagrado. É intenção desta escola investigar esta possibilidade.

A totalidade deste movimento de investigação no conhecimento, em si mesmo, na possibilidade de alguma coisa além do conhecimento, provoca naturalmente uma revolução psicológica e, a partir daí, surge inevitavelmente uma ordem completamente diferente nas relações humanas, na sociedade. O entendimento inteligente de tudo isso pode produzir uma mudança profunda na consciência da humanidade.”“.
No ano seguinte fiquei em “Arya Vihara” por quase duas semanas. Nesta casa Annie Besant e Aldous Huxley ficaram, e aqui Nitya, irmão de K, morreu. É uma casa simples, bem cuidada, com uma atmosfera maravilhosa, rodeada por muitas flores e árvores grandiosas. Hoje serve de biblioteca onde se pode ver vídeos, ouvir fitas de áudio e pode-se ler ou comprar qualquer publicação sobre os ensinamentos de K. Depois que comprei uma casa em Country Club Drive, em Ojai, K veio me visitar. Foi no verão de 1985; ele não tinha mais a melhor saúde mas era extremamente ativo. Logo que ele entrou na casa, Magda, minha esposa, perguntou se ele poderia fazer algo a respeito do quarto dela que não tinha uma atmosfera agradável, possivelmente devido ao estilo de vida de um de seus ocupantes anteriores. Ele concordou e pediu que esperássemos do lado de fora enquanto ele entrava no cômodo que lhe indicamos. Depois de um tempo ele voltou, e perguntei se ele podia exorcizar outro aposento, o que ele fez. No dia seguinte ele perguntou de forma modesta e amigável: Você percebeu alguma diferença? – Oh, sim,respondi, está maravilhoso; uma paz; uma tremenda calma. Mas pergunto se não é apenas minha imaginação. K segurou meu braço com sua costumeira intensidade e disse: Eu também.

K costumava chamar minha esposa de “Madame A.G”. Em Brockwood ele sugeriu que mudasse meu nome para “A.G.” Perguntei o que significava e ele explicou: Ange Gardien(Anjo da Guarda).
Na mesa de almoço em Ojai, mostrei a K certa ocasião o programa de uma conferência sobre psiquiatria que um psiquiatra amigo meu de Lausanne me enviara. K examinou-o com muito cuidado, como fazia com tudo que lhe traziam. Depois comentou: Nada além de palavras. Nada de fato fora de suas próprias vidas. Do mesmo modo algumas vezes ele observava a respeito da filosofia moderna que quase sempre significava “mais conversa a respeito de conversa”, e “mais palavras a respeito de palavras” e “livros escritos a respeito de outros livros escritos por outros”.

Com muitas risadas K contava a história de seu encontro com um multimilionário. Quando esteve em Washington, D.C, em 1985 dando palestras no Kennedy Hall, K foi convidado para encontrar com um milionário na esperança de que ele doasse dinheiro para a Fundação ou para a escola da Califórnia. Depois de sentar o milionário declarou:Eu acredito em Jesus Cristo. K respondeu perguntando: Por que você crê? E o envolveu numa discussão sobre as razões mais profundas que levam as pessoas a buscar segurança numa crença. K ria contando como o rosto do homem tornava-se duro como a parede por trás dele. A esposa do milionário parecia mais aberta mas mesmo assim não houve doação.
Em Washington, a capital superpoderosa, K afirmou publicamente que: O poder é ridículo sob qualquer forma. Em outra ocasião, na Índia, ele observou que não gostava da atmosfera de Deli porque ela parecia ter esta mesma função.

BROCKWOOD PARK

No começo de junho de 1984, K, Mary Zimbalist e eu fomos para Londres e daí para Brockwood Park. A Fundação insistia que K viajasse de primeira classe devido a sua idade. Neste vôo em particular não consegui um lugar na primeira classe assim, fiquei na executiva. K ouviu isso e disse: Temos que fazer alguma coisa a respeito. Não entendi o que ele queria dizer e esqueci o assunto. Quando chegamos ao aeroporto, K e Mary foram na frente enquanto eu fazia o “ckeck in”. Quando segui atrás deles, uma comissária correu atrás de mim e me deu um bilhete da primeira classe, num assento bem atrás de K. Eu nem mesmo tive que pagar a diferença.

Quando voamos sobre o deserto da Califórnia havia um magnífico pôr de sol abaixo de nós. As montanhas ardiam com todas as sombras e cores: do vermelho mais profundo ao mais delicado rosado. Podíamos ver as linhas retas das estradas e ferrovias cortando o deserto. Quando chegamos à Inglaterra, tudo estava verde. K falou com entusiasmo: Veja isso, só veja! Que verde!
Em Brockwood fiquei num pequeno aposento com sacada na Ala Oeste. Quando K mostrou-me o quarto pela primeira vez, disse: Aqui você está em casa. A sacada só podia ser alcançada subindo pela janela. Tendo me lavado da poeira de gerações, e depois de desvencilhar-me do casaco e de vários cobertores, eu costumava praticar meus exercícios de ioga ali, todas as manhãs. K achou isto fascinante e deu uma boa olhada na sacada. Alguém tirou uma foto de meu pé projetando-se pela balaustrada enquanto eu fazia um exercício de ponta cabeça.

K praticou ioga a vida toda. Ele enfatizava que a ioga era boa para o corpo mas não tinha nada a ver com iluminação espiritual. Inicialmente, ele disse, a ioga era bem diferente de hoje, sendo então apenas para poucos. Algumas vezes, quando K me mostrava algum exercício, eu ficava imaginando qual seria o estado de sua mente enquanto o fazia. Parecia que toda sua personalidade estava ausente mas, ao mesmo tempo, podia se sentir uma enorme presença. Mais tarde ocorreu-me que ele devia estar no que descrevia como “meditação”, um estado que ele dizia não poder ser produzido por nenhuma ação deliberada ou exercício. Quando fazíamos nossos exercícios pela manhã, passávamos por vários exercícios de respiração, olhos, pescoço e ombros e terminávamos saltando e correndo. K ainda fazia tudo isso aos oitenta e nove anos. Depois ele escreveu os exercícios para que eu pudesse fazê-los por conta própria. Só os exercícios respiratórios ocupavam meia hora. Um dia ele disse: Agora você conseguirá caminhar mais.

Eu tinha o hábito de praticar longas marchas. Durante o último verão com K em Rougemont, eu levantava de manhã bem cedo, em parte para fugir do calor do dia. Quando eu voltava para o almoço, K perguntava, Combien d’heures? (Quantas horas?) Eu respondia três, quatro ou cinco horas; ele sempre ficava impressionado e finalmente dizia:Ele quer ficar caminhando até o final de seus dias.
Foi em Brockwood, durante nossos exercícios de ioga que um dia K levantou as cortinas das janelas do quarto mostrando uma vista magnífica dos campos e montanhas distantes. Apontando para aquela beleza, ele me disse em latim: Benedictus est qui venit in nomine domini. Ele me pediu que traduzisse a frase, e eu o fiz assim: Bendito é aquele que vem em nome de Deus Quando pronunciei a palavra “Deus”, ele descartou-a com um gesto. K muitas vezes apontava que “Deus” era uma invenção da mente humana.
Toda manhã, pontualmente às 7 horas, eu ia para o quarto dele para nossos exercícios de ioga. Uma vez, quando entrei no quarto, ele estava ainda no escuro, e K estava na cama. Ele levantou imediatamente quando abri a porta, e disse: Hoje vou ficar na cama o dia inteiro. Respondi: Boa noite, e ele riu.  Ele tinha estado em Londres no dia anterior, e essa cidade sempre o cansava. Uma vez depois de voltar de Londres, ele me encontrou na escada, e nós dois ficamos imaginando por que se vai a tal lugar. Ele disse que era um alívio sair de lá, que era exatamente o que eu achava.

Em Brockwood K costumava lavar seus próprios pratos. Quando alguém se oferecia para fazê-lo, ele respondia: É meu trabalho. Ele também insistia em limpar seus próprios sapatos. Um dia o vi polindo o corrimão com grande entusiasmo. Na Índia não me permitiriam fazer isso, disse. Na Índia ele era obrigado a deixar que os empregados o servissem. Em Rishi Valley, ele ficava primeiro num quarto muito pequeno, o que não o incomodava. Eu simplesmente olho pela janela, brincava. Ele era uma pessoas modesta, muito gentil em sua conduta pessoal e extremamente cortês. Em relação às senhoras era mais atencioso, até cavalheiresco. Em algumas ocasiões ele podia ficar impaciente com alguém, mas nunca quis ferir os sentimentos de ninguém ou dizer diretamente o que alguém devia fazer. Ele apontaria as causas mais profundas do problema em questão e estimularia a pessoa a descobrir por si mesma qual a coisa certa a fazer. Podia-se aprender alguma coisa de cada palavra que ele pronunciasse.

Em 1984 houve muitas dificuldades em Brockwood Park em relação à direção da escola. Um grupo dentro da equipe estava em conflito com outro o que finalmente levou a afastamentos da escola. K dedicou toda sua energia ao problema. Várias vezes ele conversou com toda a equipe de professores. Uma vez ele até ameaçou fechar a porta da Ala Oeste e não colocar os pés na escola novamente. Naturalmente ele também conversou com os alunos e ficou chocado quando descobriu que professores e outros membros da equipe estavam dedicando pouco tempo aos alunos pois estavam preocupados com as divisões entre eles mesmos. Mais tarde, tendo falado com os professores de modo invulgarmente severo, ele me disse: Nunca falei assim antes. Nessa ocasião nos encontramos do lado de fora da sala de reuniões logo depois desta reunião, e ele pegou minha mão enquanto saíamos para um passeio curto. Em sua companhia a percepção da beleza natural em torno de Brockwood Park era mais intensa. Em algumas ocasiões eu o acompanhava em suas caminhadas à tarde. Em geral alguns amigos próximos iam com ele em tais passeios, mas ele falava muito pouco nessas saídas. Ele tinha uma intensa relação com as coisas da natureza. Afirmava que as raízes das árvorestêm um som, mas não o ouvimos mais. Uma vez caminhando pelo campo em Brockwood atrás do Bosque, eu ia passar entre um grupo de cinco altos pinheiros. Ele me pegou pelo braço e disse: Não! Em volta deles! Não devemos perturbá-los. Quando atravessávamos campos ele insistia que não se usassem atalhos. Não abram caminhos!dizia.

Num desses passeios que K costumava fazer durante o último ano em Brockwood, tinha-se que transpor uma cerca no trajeto. Nesta ocasião eu já estava do outro lado, esperando por K que tinha alguma dificuldade de subir na cerca. Um pouco impaciente, pensei: Ele realmente precisa de mais tempo para transpor a cerca. E como se tivesse ouvido meus pensamentos, ele respondeu: Espero que, quando você tiver a minha idade, consiga subir na cerca tão bem quanto eu. Um caso ocorrido na Índia mostrou sua íntima relação com as coisas vivas. Havia uma plantação de mangas em Rajghat que não dava frutos. Assim, planejava-se cortá-la. K contou como um dia, caminhando entre as árvores, falou: Ouçam, se vocês não frutificarem, serão cortadas. Elas deram frutos no ano seguinte.

K gostava de trabalhar no jardim. Particularmente nos primeiros tempos em Ojai, ele fazia muita jardinagem. Quando lhe mostrei meu jardim em Buchillon, que eu mesmo planejei, ele falou: É bom sentir a terra entre os dedos. Quando eu chegava em Brockwood vindo da Califórnia, me sentia cansado devido à diferença de oito horas e à mudança de clima. Assim, algumas vezes, eu costumava deitar sob uma árvore numa clareira no Bosque. O calor do sol me aquecia agradavelmente. Falei com K sobre isso e ele respondeu: Oh, não consigo dormir lá fora. Há muitas coisas para ver. E virou seus grandes olhos de um lado para o outro do mesmo modo que fazia durante seus exercícios. Sua visão era tão boa que ele nunca precisou de óculos para ler ou outra coisa durante a vida. Nunca era enfadonho estar na companhia dele, e embora fosse uma pessoa tremendamente séria, gostava de uma boa risada. Partilhamos muito isso. Ele era um mestre na arte de contar histórias e tinha uma alegria particular ao contar piadas. Duas das muitas piadas que ele às vezes contava eram:

-         Três sábios estavam meditando no Himalaia em silêncio. Depois de passados dez anos, o primeiro disse: Que bela manhã! Ficaram depois em silêncio por mais dez anos, depois do que o segundo falou: Deve chover. E eles ficaram em silêncio por mais dez anos. Finalmente o terceiro disse: Vocês dois não vão parar de falar?

-         São Pedro mostra a Deus o que está acontecendo na terra e a primeira coisa que Vêem são seres humanos trabalhando, se exaurindo de manhã até a noite. Deus fica surpreso e pergunta a São Pedro: O que há com aquelas pessoas lá embaixo? São Pedro responde: Você não disse a eles que teriam que ganhar o pão com o suor do rosto? Deus responde: Mas eu só estava brincando. Mais adiante vêem outra coisa. Pessoas em trajes festivos sentadas à mesas cheias de comida e bebida. São bispos e cardeais. À pergunta de Deus sobre quem são aquelas pessoas, São Pedro responde:Aquelas, meu Senhor, são as pessoas que entenderam que você só estava brincando.

Ele se interessava por todas as coisas, inclusive política mundial. Gostava de ver programas políticos e de notícias na televisão e, mesmo em seu leito de morte, perguntou: “O que está acontecendo no mundo?” Mas não gostava de falar sobre guerra. Um dia K, Mary Zimbalist e eu estávamos indo de Brockwood para Winchester. No caminho passamos por um imenso vale entre os campos que, Mary falou, foi o lugar onde as tropas de Eisenhower se reuniram para a invasão da Normandia. K impacientemente afastou a informação dizendo: A guerra acabou muito tempo atrás. Ele estava bem consciente do que tinha ocorrido durante a II Guerra Mundial e muitas vezes mostrava que a crueldade daquela e de outras guerras continuava no presente. Ele enfatizava que o nacionalismo é a causa comum de divisão e conflito no mundo. Muitas vezes dizia sobre si mesmo: Eu não sou indiano.

Embora algumas vezes ele mencionasse que havia sido criado por sua aristocracia, ocasionalmente referia-se a “enfadonha sociedade inglesa”. Sobre Annie Besant, que era inglesa e que ele amou como a uma mãe, disse que ela fez mais pela Índia do que Mahatma Gandhi. Usando o exemplo de Gandhi, ele mostrou que forçar os outros a fazerem o que se quer mesmo através de meios presumivelmente pacíficos como o jejum, era ainda violento. Jejum por motivos políticos era violência.
Outro caso que vem a mente relaciona-se com acontecimentos dos anos 30, muito antes de eu conhecer K. Ele visitou Roma na ocasião e estava na praça São Pedro quando o papa passou carregado numa liteira. K contava como o papa parou e lhe perguntou: Você é indiano? Ao que K respondeu: Eu vim da Índia. E o papa disse a ele: Gosto de seu rosto, depois do que, entrou na liteira e seguiu seu caminho. Uma ocasião em Brockwood Park K leu o “Velho Testamento”. Quando perguntei se gostava, ele respondeu: Gosto. Não das histórias de fada que eles contam, mas da linguagem, do estilo. Ele também gostava de histórias de detetive como passatempo e apreciava um enredo bem construído.
Lembro quando K e eu caminhávamos lado a lado um dia para a sala de jantar. Ele pegou minha mão e disse com a intensidade que muitas vezes exibia: Não sei por que gosto tanto de você. Isto nunca me aconteceu antes. Não tem nada a ver com dinheiro. Je m’en fiche (sobre o dinheiro) Não ligo mesmo. Nesta ocasião eu comecei a fazer doações para a Fundação, a escola e o departamento de vídeo. Numa ocasião ele me disse:Somos irmãos. Vários anos depois perguntei a Sunanda Patwardhan, antiga amiga de K e curadora da Indian Foundation, o que ele teria querido dizer; ela respondeu que K simplesmente apaixonava-se pelas pessoas.
K disse: Estou apaixonada, não por você, mas pelo que existe oculto em você; não por seu rosto ou suas roupas, mas pelo que é vida. (Acampamento de Ommen, 4 de agosto de 1928).

SAANEN, SCHÖNRIED E ROUGEMONT

Durante as palestras de Saanen em 1984, K não pôde ficar no Chalet Tannegg pois a casa estava sendo vendida. Assim, foi alugado um apartamento para ele perto de Schönried. Durante uma visita lá, ele nos mostrou uma quantidade de quadros de antigos navios que havia em seu quarto, num dos quais ele um dia cruzou o oceano. Outra vez, meu velho amigo de escola, Edgar Haemmerle, da Áustria, e eu fomos convidados para almoçar no apartamento de K. Edgar vivera como uma espécie de ermitão sociável numa cabana de madeira sem eletricidade, telefone ou água corrente, cuidando de vários animais, inclusive uma coruja. Quando K encontrou Edgar pela primeira vez imediatamente lhe perguntou se ele era um tipo de fazendeiro, e eles entabularam uma animada conversa sobre animais e coisas assim. Era sabido que K tinha uma relação especial com os animais. Um dia fomos almoçar no “Klösterli”, perto de Gsteig, onde servem especialmente boas saladas com a produção orgânica da horta própria. O proprietário do restaurante gosta muito de cachorros. Enquanto estávamos na mesa, seu cachorro veio e deitou-se sob a cadeira de K. O dono ficou surpreso e disse que nunca tinha visto o cachorro deitar sob a cadeira de nenhum convidado.
K gostava de falar sobre sua experiência com animais mas, mais do que qualquer outra, adorava contar a história do tigre. Na Índia alguns amigos levaram-no de carro para ver um tigre na selva. Finalmente um tigre apareceu e aproximou-se da janela do carro. K moveu-se para afagar o animal mas seus assustados companheiros rapidamente puxaram seu braço. K estava convencido de que nada de prejudicial lhe aconteceria. Ele simplesmente estava sem medo. Uma vez, na Valley School em Bangalore, foi dito a K que um bando de elefantes atravessara as terras da escola. K ficou fascinado com o relato e adoraria tê-los visto.

Outra história, que aconteceu em Rajghat, diz respeito a um macaco. Um dia, enquanto K fazia seus exercícios de ioga no quarto, um grande macaco selvagem pulou no peitoril da janela, esticando a pata em direção a K. K pegou-a, e assim eles ficaram por um tempo, K e o macaco, de mãos dadas.
Uma vez, durante o almoço em Ojai, K contou a história de como na volta de um longo passeio, ouviu um cachorro latindo. Ele disse que podia-se saber pelo latido se um cão era perigoso. Este evidentemente era. Como não havia outro caminho de volta, ele tinha que passar pela casa onde o cachorro estava latindo. Quando ele se aproximou, o cachorro correu para ele e começou a rodea-lo. De repente ele agarrou o braço de K que começou a adverti-lo: Vá para casa!  E isso afinal foi o que aconteceu, o cachorro largou-o e foi para casa. K, no entanto, não recomendava este tipo de comportamento por imitação. Ele explicava como lidar com um cachorro mau de acordo com o que lhe dissera uma vez um oficial do exército francês: segure uma vara horizontalmente para o cachorro fincar os dentes nela, então você o chuta na barriga. Mas K parecia não precisar deste tipo de defesa.

Meu amigo Edgar gostava muito de beber um pouco de vinho. Quando ele não viu nenhum em minha casa, ficou muito desapontado, e naturalmente não esperava que houvesse algum em Schönried quando foi lá para almoçar. Assim, ficou agradavelmente surpreso ao encontrar uma esplêndida garrafa de vinho tinto sobre a mesa. K lhe disse imediatamente: Você pode beber a garrafa toda. K, na verdade, não tinha nenhum. Edgar e eu estudamos na mesma escola em Davos. Então K perguntou a ele se eu tinha ido para a escola principalmente para estudar ou para esquiar. Edgar respondeu: Para esquiar, suponho.K fez uma expressão como se esperasse isso mesmo.

Na Segunda vez em que almoçamos juntos, Edgar tinha planejado voltar para casa no trem de Schönried. Estávamos numa conversa animada quando perguntei a Edgar, com alguma apreensão, quando seu trem partiria. Verificou-se que havia apenas cinco minutos para chegar até a estação. Todos se levantaram. Eu disse para Edgar: Temos que correr. Não, não, interferiu Mary, “Vou levá-lo à estação em meu carro”.  Ela subiu para pegar as chaves do carro. K levantou os braços e gritou: Você tem que correr! Você tem que correr! Mary subiu mais depressa, enquanto Edgar e eu corríamos escada abaixo, para fora da casa e em direção à estação. O trem estava quase saindo quando chegamos, ofegando pesadamente. Na próxima vez que encontrei K, ele disse: Vi como você correu.

Mesmo em relação a coisas pequenas, K era muito observador. Uma vez em Ojai quando me vesti para almoçar com K, não consegui achar um cinto para minhas calças e fui sem cinto. Havia vários outros convidados lá, mas quando voltei dois dias depois ele perguntou-me casualmente: Encontrou seu cinto?
Nada parecia escapar de sua observação. Numa ocasião fiquei sofrendo com dores no tórax por um tempo. Embora a dor fosse considerável, não dei muita atenção, nem procurei um médico. Depois de uma refeição, K deu leves pancadinhas em meu tórax com os dedos, uma ou duas vezes. Logo depois disso a dor desapareceu. Só então percebi que ele fora suscetível a minha dor. Mais tarde, ouvi histórias semelhantes de outras pessoas.

Outra vez eu estava tendo dificuldades para entender o extrato de banco de uma conta que eu havia aberto recentemente em Ojai. Pedi a Mary, que era dos Estados Unidos, que me explicasse. Enquanto ela explicava, K aproximou-se e caminhou a nossa volta, dizendo repetidamente para Mary: Maria, fique muito atenta!  Ele continuou repetindo até Mary responder: Mas eu estou atenta. Depois de um tempo, me pareceu que não havia nada mais importante do que aqueles aborrecidos extratos bancários.
Freqüentemente K falava sobre “atenção total”, mas apontava que isso não podia ser confundido com hipnose. Algumas vezes, depois de uma palestra as pessoas pareciam estar hipnotizadas. Nestas ocasiões ele dizia para o público: Senhoras e senhores: Não fiquem hipnotizados! Por favor, levantem! Ele falava sem “pathos”, mas muito intensamente. Durante as palestras de 1985, K ficou em Rougemont. Coloquei meu apartamento alugado no Chalet I’O Perrevoué à disposição dele e a Fundação alugou um grande apartamento adicional no mesmo Chalet para acomodar a equipe, cozinha, médico e possíveis convidados como Vanda Scaravelli. No ano anterior nós havíamos convidado K para almoçar lá, e ele apreciou grandemente a mesa de jantar e sua pesada borda de madeira. Ele em geral estava ciente e apreciava a qualidade em todas as coisas. Depois de um tempo, K mudou-se do apartamento menor e mais em baixo para o maior no andar superior. Era mais espaçoso, e tinha uma sacada. Ele também ficou feliz pois fazendo isso, Mary Zimbalist não tinha mais que dividir o banheiro. Ele disse cavalheirescamente: Você sabe, ela é uma senhora.

Um dia um artista americano, Richard Gere, veio almoçar. E embora já tivesse proferido uma palestra nesse dia, K conversou intensamente com ele. Quando estava para ir embora, Richard Gere, que parecia visivelmente comovido, perguntou a K: Posso lhe dar um abraço?  Foi muito tocante ver aquele gigante inclinar-se e abraçar K de modo que a figura esbelta de K desaparecesse nos braços do outro. Em outra ocasião, depois de uma palestra particularmente comovente em Saanen, fui ver K em seu apartamento. Ele estava estendido na cama pois seu médico havia dito que ele descansasse depois de cada palestra. Eu disse a ele que tinha sido maravilhoso. Ele ficou muito sério, e uma grande dignidade emanou dele quando ele concordou simplesmente: Foi maravilhoso.

Uma senhora da Itália que veio para o almoço uma vez contou que, numa conferência de curadores e clarividentes, foi dito que curas espirituais e clarividência não funcionavam quando os pensamentos interferiam. K comentou muito simplesmente: É isso que temos dito durante setenta anos.  
Foi também em Rougemont que Pupul Jayakar disse a ele que era muito difícil entendê-lo. Ele resolutamente afirmou: Devo tornar-me mais simples. E de fato, nos dias seguintes ele expressou-se ainda mais simples e claramente. Também em Rougemont K recontou várias histórias sobre mulheres que continuavam seguindo-o. Em Madras uma senhora invadiu seu banheiro entrado pela janela, e ele teve que pedir ajuda. Outra mulher implorou que ele deixasse ela beijar seus pés. Quando finalmente ele acedeu, ela agarrou seus tornozelos e não queria largá-los. Ele tinha um maravilhoso dom para contar casos de modo engraçado. Podia rir até ficar com lágrimas nos olhos. No final de uma história ele disse: Somos todos malucos; mas eles nos superam.

K assistiu aos Jogos Olímpicos de 1984 pela TV em seu apartamento em Schönried. Quando algumas corridas eram mostradas, ele gritava: Maria, veja como eles correm! Veja como eles correm!
K gostava de falar francês. Uma vez na hora do almoço estava nos falando sobre Paris onde havia passado algum tempo, particularmente durante os anos 20. Conheceu nessa época um marajá que colecionava carros e comprava qualquer modelo que não possuísse. Numa ocasião K acompanhou-o na compra de um novo carro. O vendedor simplesmente recusou-se a acreditar que K não era o verdadeiro marajá. Quando eu disse que atualmente Paris não era mais o que fora, K respondeu apenas: Vous savez… (Você sabe…)
Enquanto dávamos um passeio em Rougemont, K comentou com alguma admiração a forma ordenada como os suíços empilhavam a madeira para o fogo. Ele especulou sobre como os americanos considerariam este tipo de atividade: Ah, não temos tempo para isso; a vida é muito curta.
Uma vez, depois que voltei de uma ida a Buchillon, K perguntou-me: Como foi? Quando comecei a responder: O lago estava -, ele completou a frase mais depressa do que eu podia pensar, – como um espelho .

Uma vez ouvi K perguntar: Quando dois egoístas se casam, o que se tem? Depois de um silêncio breve e cheio de expectativa dos presentes, ele respondeu à própria pergunta:Apenas dois egoístas.
Perguntei-lhe uma vez se ele preparava suas palestras. Ele respondeu: Não, pois não saberia o que dizer.

   RISHI VALLEY, RAJGHAT E MADRAS
Quando em Madras, K costumava caminhar ao longo da praia toda tarde perto do pôr do sol. Para alcançar a praia a pessoa tinha que passar pelos extensos jardins da sede da Sociedade Teosófica em Adyar. Os guardas do portão reconheciam K, saudavam-no e ele respondia com um cumprimento amistoso. Na extremidade leste dos jardins, perto da casa de Radha Burnier, uma porta no muro levava à praia. K conhecia Radha desde a infância dela, assim como seu pai, Sri Ram, que até a morte foi presidente da Sociedade Teosófica. Radha sucedeu-o. K gostava muito dela e a convidava para conversas quando ela estava próxima. A praia onde ele costumava caminhar é chamada Praia de Adyar porque ali o rio Adyar entra na Baía de Bengala. Uma pequena ponte sobre o rio foi destruída por uma tempestade, e agora restava apenas uma parte dela. K costuma ir direto para o lado quebrado. Parecia um tanto perigoso, particularmente porque havia muitas vezes um vento forte, e podia-se facilmente imaginar que uma pessoa com a estrutura delicada de K podia ser impelida para fora da ponte. Na Índia ele usava sempre roupas indianas, e ali elas flutuavam como velas ao vento. Eu ficava perto dele de modo que pudesse segurá-lo se ele caísse. No entanto, de fato, o perigo de ser atirado da ponte deve ter sido maior para mim do que para K cujas pernas permaneceram notavelmente vigorosas até o fim de sua vida.

Na desembocadura do rio víamos muitas vezes pessoas que tentavam pegar peixes com um tipo de rede feita de galhos. Uma vez estávamos observando-os enquanto jogavam a rede. Era uma atividade bastante complicada e o resultado de seus prolongados esforços foi um único e serpenteante peixe. K, que observava este procedimento bem de perto, ficou horrorizado com as condições de vida daquelas pessoas.
Ele nos disse que em Bombaim tinha visto prédios modernos nos quais o preço de um apartamento era cerca de um milhão de dólares, enquanto bem em frente ao prédio uma família inteira vivia na sujeira da rua. K estava profundamente consciente da pobreza das pessoas na Índia e profundamente tocado pela miséria causada por ela. Muitas vezes ele deplorava o dinheiro gasto nos casamentos indianos e considerava tal despesa inútil e irresponsável.

Indianos em geral não caminhavam por gosto, mas quando K saia para suas caminhadas à tarde, uma tropa de seguidores se juntava a ele. Quando crianças o acompanhavam, ele as segurava pela mão durante um tempo. Freqüentemente uma porção de pessoas ficava esperando ao longo da praia. Quando elas o saudavam, ele respondia de modo amistoso.

Durante um passeio à tarde, um homem gordo caminhava perto de K tirando muitas fotos dele. Embora eu tentasse gentilmente afastá-lo, ele não parecia notar meus esforços. Mas quando vi que parecia não se importar, desisti de minhas manobras. O homem orgulhosamente me anunciou que havia tirado cerca de 200 fotos de K.
Em 1984 havia planos para K fazer um debate público com o Dalai Lama em Deli. Durante uma conversa, K conjeturou sobre o que falar com o Dalai Lama e finalmente afirmou: Bem, de qualquer modo eu direi a ele que é tudo tolice. Mas Indira Gandhi, então primeira ministra indiana, foi assassinada no dia anterior ao debate e, infelizmente, a coisa toda foi cancelada devido à subseqüente agitação na capital indiana.
Um dia em Deli a filha de Radhika Herzberger e uma amiga estavam almoçando conosco na casa de Pupulji. K perguntou-lhes em que assuntos estavam interessadas. Elas responderam: Física e matemática. Depois de uma pausa K comentou: Um tanto assustador – jovens interessadas em física e matemática!  K estava sempre preocupado com as conseqüências da crescente especialização no mundo.
Uma vez em Rishi Valley, quando K deixou o salão depois de ter assistido a uma apresentação de dança, ele achou que suas sandálias tinham desaparecido. Outro par de sapatos tinha que ser encontrado para que ele pudesse voltar para casa. Mais tarde ele comentou: Agora alguém tem um belo par de sandálias.  Mas ele também ficou imaginando se o ladrão ia simplesmente usá-las, ou ia transformá-las em objeto de adoração.

Durante nossa estadia em Rishi Valley em 1985, algumas vezes nós fazíamos nossos passeios na direção oeste. Ao longo deste caminho pode-se ver um templo que é consagrada a uma das muitas deusas hindus. Em várias ocasiões K exorcizava este templo andando em volta dele. Um dia nós entramos. Quando eu estava a ponto de entrar num aposento que estava separado por uma tela de gelosia e por trás da qual podia se ver uma pomposa estátua da deusa, ele me reteve e disse: Não; eles não querem que entremos!
Sobre Rishi Konda, a Montanha dos Sábios, que domina o vale, ele costumava dizer: Esta é a Esfinge de Rishi Valley.

Em dezembro de 1984, depois de um debate com os alunos de Rishi Valley, K ficou impressionado pelo vivo interesse e abertura daqueles jovens. Com grande compaixão ele nos perguntou: Você reparou nestas crianças? Elas serão jogadas aos lobos!
Uma vez perguntei a K: Senhor, o que há de diferente na Índia? Ao que ele respondeu:Há mais medo aqui.
K uma vez me contou o caso de um professor em Rajghat que lhe perguntou: Senhor, posso lhe dizer algo? Quando você vem aqui, é como uma tempestade. Por isso ficamos todos felizes quando você vai embora.
Quando perguntei a K o que eles mais queriam em Rishi Valley, ele respondeu: Um centro para adultos.



UM RELATO DA ÚLTIMA VIAGEM À ÍNDIA COM K

Em novembro de 1985 em Rajghat, K me disse que ainda tinha alguns meses de vida. Quando lembrei-lhe que ele havia nos prometido viver mais outros dez anos, ele apenas levantou os braços. A saúde de K já havia começado a se deteriorar em Brockwood. Os costumeiros passeios que ele costumava dar tornaram-se mais curtos. A caminhada pelo Bosque e pelo campo, que em certo momento incluía transpor uma cerca, ele não fazia mais. Fora isso, estava tão ativo como sempre. Uma vez ele me disse: Je travaille comme un fou! (Estou trabalhando como o diabo!)
K gostava quando alguém ligado a ele o acompanhava à Índia. Ele me convidou para ficar perto de onde ele morava e comer a mesma comida. Você fica conosco!  ele disse quando fui a primeira vez para Rishi Valley e Madras em 1984.

Em 1985/86 fui com ele em sua última viagem à Índia. Voamos de Londres para Deli via Frankfurt. Porque o avião de Londres estava atrasado, no aeroporto de Frankfurt fomos levados de um terminal para outro num carro elétrico, o que foi uma grande sensação para K.

Ele também ficou assombrado com as grandes distâncias dentro do aeroporto. No avião ele disse: Estou feliz por estarmos nós dois sozinhos. Era noite quando sobrevoamos a Rússia e o Afeganistão. Depois de chegar em Deli, K foi hospedar-se na casa de Pupul Jayakar e eu fui para um hotel.
Todo dia no pôr do sol nos encontrávamos no Lodi Park. Na entrada do parque havia uma cruzeta giratória que brilhava com a sujeira das muitas mãos que a tocaram. Eu a abria com o pé, e toda vez K exclamava: Bom!  Ele era muito preocupado com a limpeza. O parque era bem cuidado, com muitas árvores, gramados, canais e pontes, e antigos prédios da época mongol. Com o anoitecer, inumeráveis pássaros reuniam-se e ajeitavam-se para passar a noite. O barulho que faziam era ensurdecedor. De vez em quando Nandini ou a filha de Radhika, Maya, se juntavam a nós, e algumas vezes Pamaji nos acompanhava.
Viajar e as freqüentes mudanças de clima cansavam K, e sua saúde deteriorou em Deli. Ele não dormia bem e comia muito pouco.

Ocasionalmente outros andarilhos o reconheciam. Um homem abordou-o um tanto agressivamente perguntando: Você é Krishnamurti? Você devia ficar na Índia. Aqui estão suas raízes. K respondeu: Não sou ninguém! Levantou as mãos e me disse: Veja! Eles têm uma idéia fixa e agarram-se a ela. Apesar dessa experiência, K ficava amistosamente frente a todos que encontrava e, especialmente aos desprivilegiados e àqueles que normalmente eram ignorados, como o vendedor de sorvete na entrada do Lodi Park.

No avião para Varanasi K manteve a cortina abaixada devido ao sol brilhante. Ele sofreu uma vez com uma insolação e tinha que ter cuidado com a luz direta do sol. Mas de vez em quando levantava a cortina para ver os picos brancos da Himalaia. Ele falou: As montanhas são realmente algo!
Ele me contou que uma vez, ainda jovem, estava escalando a Zugspitze com com sapatos comuns. Um guia que passava com um grupo de alpinistas numa corda reparou nele. Depois de repreendê-lo, amarrou-o no final da corda e levou-o montanha abaixo. K, no entanto, não ficou com medo, e disse que podia ter descido em segurança por conta própria.

Fiquei dominado pela atmosfera de Rajghat em Varanasi. Ali se podia sentir o encantamento que parece existir em todos os lugares em que K viveu – existe também em Brockwood, Rishi Valley e Ojai. Pode-se encontrá-la até no Chalet Tannegg em Gstaad, em Vasanta Vihar em Madras, e na casa de Pupul em Deli. Os arredores são de grande beleza e mantidos imaculadamente: ilhas de serenidade no meio do tumulto do mundo, cheias de árvores, flores, pássaros e borboletas; e que possuem uma certa santidade.

Caminhando pela área da escola, chega-se a vários sítios de escavação arqueológica. A propriedade da escola fica em uma das mais antigas partes de Varanasi, chamada “Kashi”, e presume-se que havia ali templos, parques e palácios de 4000 ou 5000 anos. Além dos sítios arqueológicos, um canal leva o esgoto da cidade para o Ganges. O mau cheiro é notado em todo o caminho até a casa de K. Ele riu quando Pupulji assegurou que um novo sistema de esgoto seria construído num futuro próximo. Obviamente esta promessa foi feita inúmera vezes ao longo dos anos. Quando visitei Rajghat no ano seguinte, nada havia sido feito ainda. Só em minha visita no final de 1988 percebi o início da construção de um imenso novo sistema.
Na escola de Rajghat meu quarto ficava abaixo do quarto de K. Logo que chegou, K deu início a intensas conversas com Radhika e vários outros colaboradores indianos. À tarde ele dava várias voltas em torno do “playground” da escola acompanhado por seus amigos que ele chamava brincando de guarda-costas. Mesmo durante estes passeios recreativos ele continuava suas discussões com eles.

Era costume convidar para o almoço pessoas com as quais K mantinha animadas conversas. Em Ojai e Saanen algumas vezes ele ficava conversando até quatro horas da tarde, mesmo que tivesse feito palestra pela manhã. Ele gostava de perguntar aos convidados sobre suas respectivas áreas de atuação. Assim estava bem informado sobre os avanços em política, educação, medicina, ciência, computador, etc. Uma vez o vice-reitor de uma universidade e a esposa foram convidados para o almoço em Rajghat. K notou com tristeza que o homem não olhou nem sorriu para a esposa uma vez sequer.

De vez em quando a nora do dr.Pachure trazia sua adorável filha de três anos. K dizia para a garotinha: Não esqueça que eu quero ser seu primeiro namorado!

Durante o período que ficamos em Rajghat, muitos festivais religiosos ocorreram e eram em geral muito barulhentos. O templo vizinho ressoava com fogos, tambores e cantorias até tarde da noite. Na manhã seguinte começava tudo de novo. Havia também ao lado uma mesquita e podíamos ouvir grandemente amplificada a canção monótona do muezim durante nossos passeios. Nada disso parecia perturbar K. Se o muezim não tivesse ainda começado sua convocação e percebesse a aproximação de K, vinha até a cerca para apertar-lhe a mão afetuosamente.

Nesta ocasião, parte do filme indiano The Seer Who Walks Alone (O profeta que caminha sozinho), um documentário sobre K,estava sendo feita em Rajghat. Nela, K atravessa a ponte estreita sobre o rio e passa pelo caminho que o Buda usava quando ia a Sarnath depois de ser iluminado. K disse ao produtor do filme: Farei tudo que você quiser que eu faça. Numa ocasião, estando numa colina acima do rio Varuna, K foi filmado contra o sol poente como uma antiga escultura.

Quando se aproximava a hora de suas palestras públicas, K parecia ganhar nova energia. Ele proferiu três palestras e manteve um encontro de Perguntas e Respostas em Rajghat, apesar dos sinais óbvios de fraqueza física. Também fez três diálogos com Panditji, na presença de trinta ou quarenta ouvintes, no andar superior de sua casa, que estão registrados no livro The Future Is Now . Durante estas palestras um participante destacou-se pela maneira simples e clara com que se comunicava com K. Na ocasião eu não sabia que esta pessoa era o novo diretor da escola, Dr. Krishna. K estava interessado em cada aspecto do encontro. Convidou o Dr. Krishna e sua família para o almoço e conversou afetuosamente com sua esposa e filhos. Um dia o avô veio também. Como sempre K preocupou-se também com detalhes práticos, como o salário adequado para o novo diretor, e que ele tivesse um carro que levasse sua filha para a universidade. K ficou entusiasmado com o doutor Krishna que, como médico conhecido, trabalhara anteriormente nos EUA e Europa. K me contou que quando lhe perguntou se ele assumiria a escola, depois de deliberar algum tempo, ele respondeu: Eu ficaria muito satisfeito.

Apesar do estado precário de sua saúde, K dedicou todo seu tempo e energia a este assunto. Foi muito bom que o doutor Krishna pudesse assumir a direção da escola já que havia bastante dificuldades lá.
Finalmente ficou resolvido que K faria as refeições na cama, já que ele dificilmente tinha chance de comer alguma coisa durante estas conversas na hora do almoço. De fato, ele tinha muito pouco apetite.
Depois de um passeio K perguntou a Upasani, que pretendia aposentar-se como Diretor Comercial da escola de Rajghat, se ele continuaria trabalhando para a Fundação. Upasani concordou em continuar enquanto K estivesse lá. Eu disse a K: Upasani devia continuar mesmo quando você não estiver. K imediatamente pediu a Upasani: Senhor, fique um ano ou mais. Upasani ficou tão emocionado que chorou; e, de fato, em 1987, depois da morte de K, ele tornou-se secretário da fundação na Índia. Estava escurecendo e, de repente, K perguntou: Onde está ele?  pois não conseguia distinguir Upasani no escuro. Isto marcou o início de uma espécie de cegueira noturna. 

Em Rajghat K várias vezes abordou o assunto do sexo. Ele apontou que se não fosse o sexo, não existiríamos, que era simplesmente uma parte da vida. Alguém falou com K sobre uma cerimônia de casamento em que os convidados já haviam chegado quando descobriram que o noivo havia desaparecido sem explicação. K muitas vezes referia-se a esse evento, conjeturando sobre a aparente determinação da noiva de casar apesar das grandes dificuldades inerentes a tais circunstâncias. A certa altura ele disse em voz alta:Eles fizeram sexo? A inocência desta observação causou risos consideráveis entre os presentes.
Quando ele foi convidado para as comemorações do Jubileu da Sociedade Teosófica em Varanasi, perguntou a toda a assembléia se o sexo era necessariamente mal. Um homem, que parecia um tanto fanático, respondeu com um categórico Sim!  Esta não era uma palestra pública e, assim, K não prosseguiu com o assunto.

Quando K esteve com vários teosofistas no quarto de Annie Besant, perguntou a eles:Sobre o que vamos falar?  E continuou: Oh, sim, vou contar algumas anedotas a vocês.O serviço da café de Annie Besant ainda estava no quarto mas K não tinha nenhuma lembrança dele nem do próprio quarto. O serviço de café devia estar ali a cerca de sessenta anos.

Durante os passeios ele começou a dizer que suas pernas estavam muito fracas. Uma vez, depois de caminhar em torno do campo de esportes da escola, ele caiu na escada. Seus acompanhantes quiseram ajudá-lo mas ele recusou dizendo: Se eu cair na escada é problema meu!

Depois das palestras voamos para Madras via Deli. Quando chegamos o tempo estava agradavelmente quente. As palmeiras e arbustos floridos balançavam suavemente com a brisa fresca. Enquanto íamos do aeroporto para Vasanta Vihar, senti de repente como se estivesse voltando para casa. Neste exato momento K disse: É como voltar para casa!

Mais tarde, quando caminhávamos pela praia, vimos e ouvimos as ondas quebrando violentamente na luminosa areia amarela. Havia um forte vento soprando e nuvens lilases delicadas estavam no céu. Contra este cenário, a lua cheia surgiu do oceano ao mesmo tempo em que o sol se punha espetacularmente do outro lado. Tudo isso se refletiu para nós na superfície do rio Adyar.
Ficamos apenas poucos dias em Madras. Tendo saído de manhã cedo para Rishi Valley, desta vez vimos o sol nascer enquanto a lua se punha simultaneamente a oeste.

Estávamos viajando num carro novo que era decididamente mais confortável que o antigo americano que usávamos antes. Como sempre, o carro ficou disponível através de um bom amigo, o senhor Santhanam. Não paramos até termos coberto metade da distância e as primeiras montanhas aparecerem. O cenário matinal era imensamente pacífico. Um motociclista que havia parado na estrada ficou surpreso por ver K ali. K não ficou menos surpreso ao ver alguém que o reconhecia naquele lugar isolado. K conversou com nosso motorista sobre sua família e insistiu que ele mandasse os filhos para Rishi Valley School. Atualmente seu filho freqüenta a escola.

Radhika morava no mesmo andar de K em Rishi Valley. Ela e eu tomávamos o café da manhã na sala de jantar de K. Algumas vazes, quando K estava se sentindo mais forte, eu ia vê-lo em seu quarto para desejar um bom dia. Porque ele estava se sentindo tão fraco, seus passeios diários eram cancelados mas ele tinha ainda muitas reuniões com alunos e professores.
Depois que os professores de Brockwood, Ojai e das outras escolas indianas chegaram para a Conferência Internacional de Professores em Rishi Valley, confirmou-se que K era capaz de participar de algumas reuniões. Sua participação ativa não havia sido planejada mas elevava o nível das discussões. Estas palestras também estão no livro The Future Is Now.

Em uma ocasião estávamos falando com ele sobre a criação de um Centro em Rishi Valley. De repente um pássaro chegou na janela e começou a bater com força na vidraça, obviamente querendo entrar. Era uma poupa e parecia agitada com os vários estranhos na sala. K acalmou-a dizendo: Tudo bem, tudo bem, estou aqui, estou aqui!  Radhika me disse que K falava com o pássaro algumas vezes. Uma vez quando ela entrou no quarto dele, achou que K estava com uma visita. Ele estava falando com a ave: Você pode trazer seus filhos, mas eles provavelmente não vão gostar daqui pois quando eu partir as janelas serão fechadas e vocês não acharão a saída.

Depois que K voltou a Madras, fui com alguns professores de Brockwood e Ojai visitar a escola em Bangalore. O estado de saúde de K tornava difícil para eu imaginar como ele faria uma série de palestras públicas para milhares de pessoas em Bombaim. Assim, senti grande alívio quando elas foram canceladas. Fiquei em Madras mais outra semana e acompanhei-o em alguns de seus passeios pela praia. K agora decidira que queria ir para Ojai para ter mais tranqüilidade. Também seria mais fácil ter tratamento médico estando em Pine Cottage. Assim K voou para a Califórnia via Singapura. Scott Forbes, que já havia viajado com ele de Rishi Valley para Madras, acompanhou-o nesta jornada através do Pacífico.
Depois de voltar à Europa, passei três semanas nas montanhas suíças e voei de lá direto para Ojai.
Agora K estava muito doente e pedira que alguns curadores fossem chamados para estar com ele e discutirem assuntos urgentes sobre a Fundação.

Quando K já estava em seu leito de morte, um aluno da Oak Grove School escreveu-lhe uma carta. K pediu que lessem a carta para ele e expressou então seus agradecimentos ao estudante. Apesar de estar sentindo muita dor e estar muito fraco fisicamente, ele não esqueceu o assunto e mais tarde perguntou-me se os seus agradecimentos tinham chegado ao remetente da carta. Mesmo nesta condição, sua única preocupação eram os outros.

Até o momento final, sua mente estava clara. Eu o vi pela última vez três dias antes de sua morte. Ele me disse: Je suis en train de partir, vous comprenez? (Estou a ponto de partir, você entende?) Estas foram suas últimas palavras para mim.

Na noite da morte de K, senti uma envolvente onda de paz fluindo suavemente pelo vale com a brilhante luz da lua. Uma vez em Brockwood Park ele me disse quando voltávamos de uma caminhada: Este lugar deve sempre permanecer como está; e quando lhe foi perguntado o que devíamos fazer depois de sua morte, ele respondeu: Cuidem da terra e mantenham puros os ensinamentos.


PÓS-ESCRITO

Durante sua vida Krishnaji freqüentemente perguntava àqueles a sua volta: O que você vai fazer quando K se for? As vezes ele mostrava que grupos formados em torno de um líder tendiam a romper-se dentro de quarenta anos da morte do fundador. Amigos me perguntavam o que aconteceu nos anos após 1986, quando K morreu.

Krishnaji sempre enfatizou os perigos e falhas das organizações que seguiam um líder em particular e que tinham uma hierarquia ou ordem. Existem cinco Fundações e cerca de trinta comitês em vários países por todo o mundo engajados em preservar e fazer conhecer a beleza e a necessidade dos ensinamentos de Krishnamurti. Eu estou em contato tanto quanto possível com as pessoas envolvidas nestes grupos e os visito várias vezes durante o ano.

As Fundações mantém escolas, centros de estudo e arquivos. Produzem boletins, livros, áudio e videoteipes, e organizam sua tradução em várias línguas. Os Comitês ajudam as Fundações em seu trabalho colaborando na tradução e distribuição de publicações em vários meios.
Krishnaji pretendia que todas as Fundações e Escolas fossem como uma só, que trabalhassem juntas nesse espírito. Era uma de suas mais profundas preocupações transmitir isso àqueles que trabalharam com ele durante sua longa vida. Cinco anos depois de sua morte, estamos trabalhando juntos em todo o mundo para prosseguir com o trabalho que ele começou.

                  EPÍLOGO DA TERCEIRA EDIÇÃO 1996

Passaram-se dez anos da morte de Krishnamurti. O centésimo aniversário de seu nascimento foi celebrado pelas Fundações, e isto foi visto como uma oportunidade para dar ao seu trabalho uma plataforma pública maior. Em Vasanta Vihar, sede da Fundação indiana em Madras, houve um enorme encontro, com vários milhares de participantes. O Dalai Lama inaugurou as celebrações do Ano do Centenário. A senhora Pupul Jayakar e o antigo presidente da Índia, Senhor R. Venkataram, falaram na ocasião.
Um grande encontro também foi realizado em Ojai, Califórnia, sede da American Foundation e da escola. Conferências sobre Krishnamurti realizaram-se em universidades no México, Ohio e Paris.
Muitas novas publicações apareceram, entre elas o amplo trabalho de Evelyne Blau,Krishnamurti: 100 anos. Parece que logo haverá mais livros sobre K e seu trabalho do que livros dele mesmo. Completarei minhas lembranças com algumas citações de K.

…Chega alguém que está extraordinariamente curioso para saber como vive uma pessoas como K.
Estas são palavras do próprio K. Embora ele não as tivesse dirigido diretamente a mim, eu sabia que eram para mim. Ele certamente acertou em cheio, pois eu estava profundamente interessado em saber como tal extraordinária pessoa vivia. Para mim não era tanto a história de sua vida (como os teosofistas descobriram um menino negligenciado, que finalmente tornou-se o Mestre Universal); meu principal interesse consistia em descobrir como a extraordinária pessoa K, que inspirava tal respeito, de fato vivia sua vida diária.
Minha curiosidade foi mais do que satisfeita. Ainda lembro hoje, dez anos depois de sua morte, eventos que, acho, podem ser contados.

Em fevereiro de 1986, com 90 anos, Krishnamurti ao final de sua extraordinária vida, voltou a Ojai para morrer. Até o fim ele esteve interessado na humanidade e nas pessoas que se aproximaram dele.
Apesar de sua terrível fraqueza e dores, ele falou no seu modo simples e claro aos seus colaboradores que chegavam de todo o mundo. Deixou o fardo da cooperação com eles. Disse que o presidente e os secretários das fundações não deveriam ter outro trabalho. Falou sobre a possibilidade de se formar um grupo de pessoas cuja principal tarefa seria viajar e “manter a coisa toda unida”.
E ele podia ainda rir. Quando perguntou sobre minha casa em Ojai e descobriu que ela ainda estava sendo reformada, riu tanto que eu temi que os tubos de alimentação, que passavam pelo nariz dele, pudessem machucá-lo.

Recentemente li no Livro On living and Dying, a palestra de Bombaim de 7 de março de 1962.
A pessoa tem que estar indiferente – à saúde, à solidão, ao que as pessoas dizem ou não, indiferente se alguém tem sucesso ou não, indiferente à autoridade. Se você ouve alguém atirando, fazendo muito barulho com uma arma, você pode muito facilmente acostumar-se com isso, e fica com o ouvido surdo; isso não é indiferença. A indiferença surge quando você ouve o ruído sem resistência, fica com esse ruído, caminha com ele infinitamente. Aí esse ruído não afeta você, não o perverte, não o torna indiferente. Assim você ouve todos os ruídos do mundo – o barulho dos seus filhos, de sua esposa, dos pássaros, o barulho dos políticos falando – você os ouve completamente com indiferença e, portanto, com compreensão. (página 99)

O que ele diz ali sobre indiferença (que não é para ser confundida com negligência) me faz lembrar de uma cena de seu leito de morte. Um incidente similar mas diferente ocorreu em 1985 durante os encontros de Saanen. Na ocasião K estava morando em meu apartamento em Rougemont e tinha queimado o dedo numa lâmpada para leitura. Fiquei horrorizado quando vi a queimadura mas K descartou-a e disse que não o aborrecia pois ele podia suportar a dor.

Chegaram mensagens para ele de todo o mundo e elas foram lidas com ele na cama. Fiquei surpreso com as coisas triviais e banais que se solicitava de um homem morrendo.
Embora ele tivesse dito a várias pessoas, inclusive a mim, alguns meses antes, que morreria em breve, todos esperavam que ele superasse a doença. Quarenta anos antes em Ojai, ele ficou tão mortalmente doente que seu médico, Keller, desistiu. Um médico homeopata cuidou dele devotadamente durante um ano inteiro. Isto me foi contado em Ojai pela esposa do médico que estava com mais de oitenta anos.
Um relato muito tocante dos eventos em torno de sua morte é dado pelo doutor Deutsch, seu médico na ocasião, no livro de Evelyne Blau, Krishnamurti: 100 anos.

De On Living And Dying (Sobre a vida e a morte):
Veja, morte é destruição. É o fim: você não pode argumentar com ela. Não pode dizer: “Não, espere mais uns dias”. Você não pode discutir; não pode rogar; é o fim; é absoluta. Nós nunca enfrentamos nada definitivo, absoluto. Sempre damos a volta, e por isso temos medo da morte. Podemos inventar idéias, esperanças, medos, e ter crenças como “vamos ressuscitar, nascer de novo” – tudo isso são artimanhas da mente buscando a continuidade que está no tempo, que não é um fato, que existe apenas no pensamento. Sabe, quando falo sobre a morte, não estou falando sobre sua morte ou minha morte – estou falando sobre morte, este extraordinário fenômeno. (Página 100)
Assim, quando falamos da morte, não estamos falando de sua morte ou de minha morte. Na verdade não importa muito se você morre ou eu morro; nós vamos morrer, felizmente ou em desgraça – morrer felizmente tendo vivido completamente, integralmente, com todos os sentidos, com todo nosso ser, completamente vivo, em completa saúde, ou morrer como pessoas miseráveis entrevadas pela idade, frustradas, em sofrimento, nunca tendo conhecido um dia feliz, rico, nunca tendo um dia em que víssemos o sublime. Assim, estou falando de Morte, não sobre a morte de uma pessoa em particular. (Página 101)

Veja, nós não amamos. O amor só surge quando não há nada, quando você negou o mundo todo – não uma coisa enorme chamada “o mundo” mas apenas “seu mundo”, o pequeno mundo em que você vive – a família, o apego, as brigas, a dominação, seu sucesso, suas esperanças, suas culpas, suas obediências, seus deuses, e seus mitos. Quando você nega todo esse mundo, quando nada permanece, nenhum deus, nenhuma esperança, nenhum desespero, quando não há busca, então a partir desse grande vazio vem o amor, que é uma realidade extraordinária, que é um fato extraordinário não conjurado pela mente que tem uma continuidade com a família através do sexo, através do desejo. (Página 102)

Eu pude experimentar esta indiferença calorosa, afetuosa, que K menciona na palestra citada quando estávamos viajando juntos para a Índia em 1985. Estávamos sentados no carro em Brockwood Park, esperando para seguirmos para o aeroporto. Tivemos que esperar um bom tempo por Mary Zimbalist. Podia-se achar que K estaria nervoso na expectativa de viagem tão longa. Mas ele sentou-se e esperou com total compostura e estava até alegre, embora tenha sido uma longa espera.

Saímos muito cedo, o dia não tinha raiado e, contudo, toda a equipe e os alunos foi à Ala Oeste e ficou esperando ao pé da escada para nos ver partir. Passamos por um corredor de quase cem pessoas, e K apertou as mãos delas no caminho até a porta. A atmosfera era solene. Pairava no ar a premonição de que esta seria a última viagem de K a Brockwood. Dorothy Simmons, a antiga diretora da escola, levou-nos ao aeroporto em seu carro, K e eu sentados no banco de trás. No começo estava chovendo mas logo parou. Dorothy, no entanto, esqueceu de desligar os limpadores de parabrisa, que começaram a arranhar no vidro seco. Fiquei tenso e gostaria de ter dito algo, mas não se esperava uma reação de K. E, como tantas vezes, sua reação foi diferente e inesperada. Ele simplesmente disse: “Parou de chover”, o que fez Dorothy desligar os limpadores imediatamente. No aeroporto o comovente momento da partida trouxe lágrimas aos olhos das mulheres já que Dorothy e Mary ficariam e só eu voaria para a Índia com K. Rita Zampese, que na ocasião era ainda chefe do escritório da Lufthansa em Londres, levou-nos para a sala de trânsito. Toda minha bagagem consistia numa mochila, e foi comigo para o avião. Hoje eu nem consigo imaginar como pude fazer uma viagem com tão poucas coisas.

Na sala de trânsito nos encontramos sentados junto a um grupo de mulheres e homens um tanto desagradáveis, provavelmente da área de negócios, que estavam muito ocupados com eles mesmos. Estavam falando, fumando e bebendo. K olhou-os com olhos arregalados, e a expressão de seu rosto era um misto de espanto e horror; contudo, não havia o mínimo desdém. Tivemos que trocar de avião em Frankfurt, e lembro com que alegria K viajou no rápido ônibus elétrico. Uma vez no avião, ele ficou no assento único na frente à direita que só a Lufthansa oferecia.
Eu, ao contrário, sentei ao lado de um cavalheiro que lia um jornal e ouvia música ao mesmo tempo. E mais, fazia movimentos de mão como um maestro, e deduzi daí que ele seria músico.
Ele estava também totalmente autocentrado e não mostrava o menor interesse em seus vizinhos – neste caso, K e eu.

Ouve-se muitas vezes das pessoas que vão às palestras que K aborda sempre o tópico em que elas estão imediatamente interessadas. Desde que K se dirige muitas vezes a milhares de pessoas, deve-se perguntar como isso é possível. O mesmo problema está na mente de todos? É a consciência comum que todos partilhamos? Ou K apenas escolhe uma pessoa que está intensamente envolvida com um problema?
Eu pessoalmente experimentei a capacidade de K para ler pensamentos, e outras pessoas deram testemunho disso. Em Madras, K e eu saímos para um passeio pela praia juntos, com um ou dois outros amigos. Estávamos voltando e eu caminhava atrás de K. Estava pensando – e os outros certamente sentiam isso – que K tinha me dado mais atenção, quando ele se virou para mim e falou: “Não acho isso”.
Outro incidente ocorreu na sala de jantar em Brockwood. Um jornalista perguntou-me o que eu fazia para viver. A pergunta aborreceu-me e eu estava a ponto de responder, um tanto provocativamente, que eu não fazia nada quando K, que estava sentado perto de mim na mesa, adiantou-se e disse: “Eles fazem torneiras”.
Outra vez, em Rishi Valley, um indiano da África do Sul estava sentado em nossa mesa. Ele era conferencista numa universidade sul africana, e K fez perguntas precisas e penetrantes sobre a situação na África do Sul, tentando de vários modos fazê-lo falar sobre seus sentimentos a respeito. Mas nosso convidado só respondia com generalidades. Finalmente K, referindo-se de repente a mim, disse: ”O senhor Grohe não podia suportar ficar na África do Sul”. Fiquei atônito. Reconhecidamente eu havia dito a ele que trabalhara na África do Sul mas não tinha dito que um ano depois, não agüentava mais ficar, embora minha família tivesse uma bela casa e estivesse vivendo lá por muitos anos. Meu pai, temendo os russos, mudou-se para a África do Sul depois da guerra. Quando uma vez eu contei a K sobre o medo que os alemães tinham dos russos, ele disse que eles estavam certos de terem medo dos russos. Aconteceu de eu estar presente uma vez quando K estava sendo entrevistado pelo jornalista e editor checo, Jadry Prokorny. Prokorny perguntou o que K teria feito se vivesse num país comunista. K respondeu que teria que ser capaz de falar apenas para pequenos grupos. Em conversas e palestras públicas ele repetidamente falava sobre a brutalidade dos governantes comunistas. Ele sabia exatamente o que estava acontecendo no mundo.

por  (Friedrich Grohe)


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